29/06/10

O grau zero da literatura



As exéquias de Saramago continuam. As revistas da semana, aliás, dedicam matéria extensa sobre o homem, onde toda a gente foi chamada a dar a sua opinião laudatória. Os tristes. Os pobres. Os coitados. Ninguém faltou. Sobre literatura, no entanto, ninguém achou digno dedicar uma palavra. Interessante.

Na verdade, compreende-se. Por entre elogios fantasiosos à pessoa e uma polémica artificial sobre a não presença de Cavaco Silva no funeral (polémica que o Torquemada pátrio, Francisco Louça, fez questão de inflamar e que num país civilizado não teria tido lugar) é difícil encontrar espaço para falar daquilo que realmente interessa.

Por isso não surpreende que ninguém tenha tido em atenção as palavras do Dr. Carlos Reis em pleno discurso fúnebre do Nobel. Que disse o Dr. Carlos Reis, especialista mor em Eça de Queiroz? Uma frase. Uma mera frase. Mas e que frase. “A grande literatura está fora do campo da moral.”

Uma pessoa ouve isto e morre. Eu morri. Várias vezes, aliás, enquanto a coisa não parou de ecoar na minha pobre cabeça.

Suspiro. Eis o grau zero da literatura. De facto, era inevitável. Principalmente quando se pede a um analfabeto que disserte sobre o assunto. Porque, na verdade, a grande literatura não está fora do campo da moral. Pelo contrário, a grande literatura é, sim, geradora de novos planos morais. Ela trata do Humano. E o Humano não está nunca fora do campo da moral. Eça de Queiroz, por exemplo, sabia-o. Que o Dr. Carlos Reis ainda não o tenha percebido só demonstra a excelsa qualidade académica dos seus estudos.

5 comentários:

  1. Assim mesmo, com todos os palavrões:

    Do caralho, meu amigo. Nunca cansas de me surpreender. Podias era escrever um pouco mais, não? Mas compreendo, a qualidade não se compadece com qualidade.

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  2. Escrever mais. Escrever melhor. Trabalhos de Sísifo, meu caro. Trabalhos de Sísifo.

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  3. Acho deliciosos todos estes debates à volta do 'valor literário de Saramago', a 'procura do ateu por Deus', etc.

    Sejamos práticos.
    Se Saramago alguma vez tivesse dito, "eu apoio o regime nacional-socialista de Adolf Hitler e acho que deve ser reproduzido à escala global", nesse caso, não haveria qualquer debate.

    Saramago seria visto como um monstro totalitário.
    O seu ataque ao Cristianismo seria visto como uma continuação da política cultural Nazi de destruir Deus e Cristo para os substituir pelo culto da Natureza e pelo neo-paganismo da Lebensreform e da arianosofia.
    A sua defesa de internacionalismo seria vista como pura geopolítica imperial.

    E com razão.

    Bom, mas Saramago só disse "eu apoio o regime internacional-socialista de Lenin, Molotov e Stalin, e acho que deve ser reproduzido à escala global".

    Portanto, não há debate.
    Pelos vistos, não era um monstro totalitário, defensor do massacre organizado de dezenas de milhões de 'indesejáveis'.
    Não era um continuador das campanhas de desculturalização, secularização e terror cultural iniciadas por Bela Kun, e continuadas em inúmeras "revoluções culturais" durante todo o século XX.
    O seu apelo ao internacionalismo não significava um sistema soviético global, com todos os horrores albergados pelo socialismo imperial.

    O principal talento do materialismo dialéctico, nas suas várias formas, de esquerda e de direita (porque o existe de direita), sempre foi a abolição da história e a destruição do raciocínio crítico objectivo (como lhe chamam, 'a vitória da teoria sobre a realidade').
    Saramago venceu a realidade.
    Mas só enquanto isso é tolerado pelo mesmo público que Saramago gostaria de submetido a um totalitarismo científico.

    Este deveria ser o real debate. Fora isso, paz à sua alma.

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  4. Caro Rui,

    Isso a que tu chamas "debate real" não é debate algum. Aliás, nem sei muito bem do que raio estás tu para aí a falar.

    Saramago foi recebido em honras por ter ganho o Nobel. Por isso acho importante discutir o seu valor "Literário". Que ninguém, nas múltiplas homenagens, tenha achado isso relevante ou importante, ora aí está uma coisa que ainda hoje não deixa de me espantar. Prefere-se gastar saliva a falar do "homem político". Uns bem. Outros mal. Mas todos alegres.

    Sim, o homem era comunista. E depois? Deve ser censurado e exorcisado por isso? É porventura agora proibido ser comunista? (E recordo meramente que ser comunista não é igual a defender uma posição totalitária) Pessoalmente não advogo a queima de livros. De ninguém.

    Para mais, encontro aí uma confusão desgraçada quanto ao "materialismo dialéctico" que leituras sérias com certeza desfariam.

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  5. O meu comentário não era dirigido especificamente ao teu texto, mas sim a toda a atenção que este homem (melhor entendido enquanto agente de mudança cultural) recebia, e ainda recebe, e receberá.

    Saramago não era um mero comunista ingénuo, mas sim um defensor aberto de Lenin e Stalin -- o que o coloca directamente no clube de fãs do sistema mais totalitário de sempre, a seguir à China comunista. E, o que é mais importante, foi um herdeiro directo, e executor devotado, da política de desculturalização gradual iniciada pelo terror cultural de Bela Kun; continuada sob os totalitarismos soviético e chinês; aperfeiçoada no ocidente pela Escola de Frankfurt, e pelos institutos de desculturalização ligados à Sociedade Fabiana e ao Royal Institute of International Affairs, no UK; e ao circuito das 3 grandes fundações e do 'macy group', nos EUA.
    É este o contexto profissional (prefiro este termo a 'literário') de Saramago.

    Portanto, sim, como disse acho interessante que esta figura, abertamente totalitária e devotada à desculturalização para fins políticos, tenha tido tanta atenção e publicidade. Um autor nazi que aparecesse a falar da morte de Deus e da Lebesnreform não teria uma fracção desta atenção, por muita qualidade literária que tivesse. A sua literatura seria reconhecida como propaganda habilidosa. Mas um defensor de um sistema dezenas de vezes mais letal que o nazi é vendido às massas como um herói. Sinais dos tempos.

    E não, como é bastante evidente eu não advoguei fazer uma queima pública dos livros de Saramago...coisa que ele, certamente, teria adorado fazer com os livros de 'indesejáveis'. Aliás, ainda há uns tempos fiz uns trocos valentes com uns livros dele que tinha por cá, o que não foi nada mau.

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