14/06/10

O óptimo é inimigo do bom


Propôs-se o Tiago a missão de me açoitar. Assim seja. Não é, propriamente, a minha ideia de diversão, mas nunca digo que não a fazer um amigo feliz. Vamos lá.

Diz-se no post de contra-ataque que eu, no fundo, revelo incoerência ao gostar muito de uma ideia de sociedade civil de inspiração americana mas, por outro lado, não dar importância aos referendos. Não percebo onde está a incoerência. E o Tiago até me ajuda no raciocínio ao referir que os referendos são «instrumentos» desta «forma de fazer política». E aqui «instrumentos» é a palavra chave. Pela negativa, claro.

Ora, a pergunta que faço, e de forma retórica, é esta: desde quando é preciso um referendo para haver participação política? E, mais importante ainda, desde quando é preciso ir a votos (em consultas populares entre eleições) para fazer saber que se está descontente com algo ou que se quer algo? A «sociedade civil» é, precisamente, aquela massa de pessoas que se avoluma - preferencialmente com nomes de referência, e não uma massa «anónima» - fazendo pressão até sobre governos que fazem ouvidos moucos. Ou seja, para mim a «sociedade civil» está na rua (embora seja preciso algum cuidado com esta expressão) e no contacto com os políticos, e não necessariamente em mágicas votações de «winnter takes all». E explico porquê.

A democracia, em geral, é imperfeita. Certo. E, sobretudo, pode passar uma esponja por cima de todas as más decisões que forem tomadas no seio de um destes regimes. Ora, o que o Tiago aceita, enquanto inevitável estado das coisas, é que, seja qual for o resultado da escolha da maioria, deve-se aceitá-lo, porque a maioria das pessoas assim o quis, o povo é quem manda e a democracia é mesmo assim. «É a vida», parece o Tiago querer pedir emprestado ou saudoso (ou não) Engenheiro Guterres.

O problema é que noto nas palavras do Tiago, ao longo dos vários posts sobre este assunto (ou associação livre de ideias e temas), uma certa rendição à democracia per se.Ou seja, quem o ouve falar, ou o lê, e se deixa convencer pela sua fé nas leis de causalidade da democracia, fica a achar que se vive muito bem em qualquer país, com as mínimas condições económicas, desde que haja democracia. «É a vida». Mentira. Não pode ser a vida. O problema dos referendos (ainda que perceba que os cidadãos procurem pedi-los) é que vinculam as minorias ao que as maiorias decidem, de forma quase inquestionável. Porque o povo, ou a sua maioria, decidiu. E o povo unido decide sempre bem, mesmo que esteja errado. «É a vida». Mentira, uma vez mais. O próprio Fareed Zakaria - um respeitável (para mim) editor da Newsweek - deambulou pelo conceito de «democracia iliberal» no seu famoso e interessantíssimo livro O Futuro da Liberdade, precisamente porque, com exemplos recentes como os da Rússia e da Venezuela, no futuro próximo veremos brotar, em todo o Mundo, novos e antigos regimes com esta nova e dupla natureza: democráticos e iliberais.

Devo dizer que não me surpreendo com a confusão entre a existência de democracia e a garantia de liberdade(s). Surpreende-me um pouco é que um tipo inteligente e obstinado - daqueles que facilmente aguentam o epíteto de cínico por teimar em ser sensato - vá bater à porta da confusão de termos que é tomar «democracia» por «liberdade». Ou comprar gato por lebre. Como muito bem refere Zakaria, o «óptimo é inimigo do bom». Ou seja, querendo procurar a «vontade do povo» em todos os assuntos, de forma directa, pode levar ao cerceamento de liberdades básicas a muita gente e, mesmo, à ingovernabilidade de um Estado. Caso este que, dizem muitos, poderia ser o do Estado da Califórnia, que fez das propositions quase uma forma de vida. Nada contra, por princípio. Mas tem resultado? Não.

A mim importa-me, sobretudo, que se negoceie qualquer alteração à lei, qualquer proposta, qualquer medida. Negociando através de tipos que se pedem que tenham educação e formação para decidir em nosso nome durante uma legislatura. E confiando, em última instância, nos políticos que foram eleitos para lá estar. Se os políticos são maus, se há falta de responsabilidade e de representatividade para com os eleitores, a culpa é dividida, pelo menos e em iguais doses, por duas partes interessadas: partidos políticos e população. Os partidos, porque deram cabo da ideia de ir buscar os melhores à sociedade civil. A população, porque continua a votar nos mesmos em vez de arriscar e votar em em, ou mesmo formar, novos partidos.

Se é utópica a minha ideia de melhorar o regime e a responsabilidade aos poucos, em vez de querer que as maiorias decidam a minha vida por uma pergunta de «sim» ou «não»? Sim, é. Mas é também aquilo a que se chamou o contratualismo, que continua a ser a menor maneira de proteger os direitos e as liberdades de todos, e não apenas do «maior número possível». E continuo a achar que, num Parlamento reformulado e mais representativo, é que está a solução.

P.S.: corre o rumor de que de um duelo ao pôr-de-sol, este vosso escriba genial tombou. Calúnias infames. Estou vivo e bem vivo. Ferido, mas inteiro. E trago o escalpe do meu rival (que, pelas parecenças a Jorge Jesus, alguns sportinguistas já me pediram para pendurar na parede da sala) como prova. O meu opositor, vaidoso e elegante, escolheu a espada. Eu, desonesto e prático, escolhi a pistola. Indignam-se aqueles que, quando propus que ele escolhesse a arma, pensaram que ele estava a escolher as armas. Semântica, caros leitores. Semântica.

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