13/06/10

E o resto é conversa

Diz aqui o João que as minhas palavras lhe deixaram um «desire to walk on all fours». Compreende-se. A salivação que ele demonstrou não deixa de requerer uma posição primária. Eu próprio, devo admitir, simulei a pose em busca de inspiração condigna para uma merecida resposta.

Eu sei que o que o João quer é conversa. É discussão. É polémica. Nada contra. Aliás, eu, como bom amigo que sou, até tenho grado em lhe fazer a vontade. Pena é que ele a queira, de forma espúria, fazer à minha conta. A mim, coitado, que não faço mal a ninguém. E para quê João? Para seres açoitado publicamente? Pronto. Seja. Mas só porque sou teu amigo. E um bom amigo.

Afirma o João que aprecia a «‘sociedade civil’ à americana». Estranhamente, eu também. Não deixa é de causar pasmo que, para o João, nos States a «sociedade civil» não organize petições, não se mobilize e não crie lobby’s. Para defender os seus legítimos interesses. Para defender as suas legítimas convicções. Os referendos, aliás, não são mais que instrumentos desta forma de fazer política, que muitos Estados americanos, na verdade, até praticam (propositions, anyone?) – inclusive (pois é, João) sobre matéria de impostos.

E, no entanto, parece que, na mente do João, eu represento alguma forma de «jacobinismo» (acusação, aliás, antiga e que, suspeito, nunca ficará velha) que sonha com uma democracia televisiva. É preciso dizer que, a ser verdade, o João também. Com uma diferença. No meu, os programas são apreciados em directo por todo o «público». Nos do João, os programas são gravados para seu deleite privado. O João está longe. O João, para os membros do programa, não existe. E ele? Ele contente, como quem vê repetições do ano passado. A sua participação resume-se a carregar no comando – On. Off. On. Off. – Numa diversão pessoal que não tem limites. Porque, para ele, se o «público» não manda em nada, a solução é simples: é retira-lo do cenário.

Faz sentido. O João desconfia da «voz popular», uma vil canalha que não percebe nada. Estranhamente ele não suspeita do apresentador nem dos concorrentes, os quais, por alguma razão estranha parece que percebem muito de alguma coisa.

Pessoalmente mantenho uma posição mais sã. Desconfio de todos. Sem excepções. Por isso não admiro em êxtase uma democracia representativa que vive em deslumbramento consigo própria. Por isso prefiro uma democracia que não limita a participação política quase exclusivamente aos partidos, e que não vive fechada no Parlamento onde os interesses partidários inevitavelmente se tendem a sobrepor aos interesses do eleitor, fazendo deste um mero espectador de um programa que não pediu nem desejou.

É claro que, se para o João a democracia parlamentarista não é perfeita, urge-se a uma solução: talvez «alterar o regime» (a solução de sempre) e começar a fazer «pressão directa» sobre o Parlamento (talvez acampando à sua porta, ainda que em voto de silêncio). Porque o João cisma em não perceber que os riscos da democracia parlamentar se prendem com a inexistência de uma «sociedade civil» que seja capaz de se impor como uma força de contrabalanço a um Parlamento que, naturalmente, para se dignificar, fomenta uma ideia de que só ele é necessário. Só ele é requerido.

Exactamente porque tenho uma desconfiança natural para com o poder, tenho uma preferência por uma democracia que institui instrumentos que possibilitem uma participação directa dos cidadãos e que não relegue toda e qualquer decisão para uma ordem superior a eles.

É claro que, o João, suspeito, sobre isto não terá grande opinião. Aliás, o João, suspeito, a partir de hoje, até agradece que não lhe peçam mais qualquer opinião. Pelo menos até se mudar para o Parlamento. 

P.S.: Para os interessados, devo ressalvar que este diferendo já foi razoavelmente sanado. O mesmo incluiu pistolas e um duelo ao pôr-do-sol. Resta dizer que, ao contrário do que é aqui dito, só um, na verdade, sobreviveu.

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