31/05/10

Cru


Pela primeira vez na minha vida, fui, na última sexta-feira, a um restaurante de sushi, que abriu quase paredes meias com a minha casa. As expectativas eram poucas: peixe cru, ausência de talheres, meter sabores desconhecidos dentro da boca, fica no sítio de uma antiga tasca (não uma tasca «à antiga portuguesa», mas no sentido em que era mesmo um chavascal). Peguei no meu velho e fomos à aventura.

Já no restaurante, puseram-me um elástico à volta dos pauzinhos, que eu não sou o Miyagi, e apontei à balda para meia dúzia de doses. Uma certa vertigem de morte invadiu-me quando apontei para um foto em que um pedaço de peixe cru jazia inerte sobre uma bola de arroz. Lembrei-me dos alimentos de plástico, de brincar, da minha sobrinha. Lembrei-me dos miolos de macaco gelado do Indiana Jones e outros que tais. Fechei os olhos a apontei. Veio isso e outras coisas que nem sei se pedi. Parecia-me tudo igual. Na dúvida, e com o peito cheio de ar e de coragem, abri a boca e provei.

Admito: tornei-me fã. Não será a minha comida preferida, mas o sushi surpreendeu-me. Aliás, mais do que o sushi - peixe cru ou cozinhado enrolado ou em posições promiscuas com bolos de arroz -. o sashimi, que me ensinaram que afinal são coisas diferentes. O sashimi, que são simples fatias de peixe cru, é das coisas mais frescas que já comi, e que até ameaçou destronar o salmão fumado da minha lista de coisas estranhamente cozinhadas favoritas. Não sendo das iguarias mais saborosas (sublinho «sabor»), é no entanto das comidas mais viciantes no pico do Verão, que se recomenda que se regue com uma boa cerveja.

Para quem torcia o nariz com a ideia de comida crua, só tenho uma vénia a fazer.

P.S.- já agora, faço publicidade: é o Famafolia (não perguntem o que é que isto tem a ver com o Japão), na Avenida dos Combatentes, em Setúbal.

A «direita católica» e a caça aos gambozinos



Ao que parece, num programa de rádio, D. José Policarpo disse o que toda a gente sabe que ele acha: que é contra o casamento gay e que Cavaco Silva devia ter vetado a lei que permitirá, num futuro próximo, esse mesmo tipo de casamentos. Acho muito bem. Acho muito bem que o Cardeal Patriarca de Lisboa pense pela sua cabeça e não ao sabor das marés do tempo. Acho muito bem que ele diga o que pensa e que o deixe claro. E até acho bem que ache o que acha sobre o casamento gay, porque só é lógico com as posições pessoais do próximo. Mas a lógica e a sensatez parecem estar, pouco a pouco, a abandonar o barco de D. José Policarpo.

Devo confessar: à falta de identificação espiritual, tenho um grande respeito intelectual pelos bispos e padres católicos em Portugal. Se permitirem o rigor, até acho que são eles as pessoas mais cultas do país em variados assuntos e sem qualquer vaidade ou «punhetagem intelectual» (para roubar uma expressão de um amigo), e só por isso merecem a minha admiração. Mas também confesso outra opinião: ao contrário de Manuel Clemente (Porto), o Cardeal Patriarca de Lisboa já não parece andar com muito tino. É que, se uma coisa é expressar uma opinião política, outra coisa é inventar hipóteses mirabolantes sobre futuras eleições presidenciais, e sobretudo assumindo uma posição de omnisciência das intenções dos católicos portugueses.

Diz D. José Policarpo que Cavaco perdeu uma boa oportunidade para «garantir a reeleição». Que é como quem diz que perdeu uma boa oportunidade para mostrar o seu catolicismo. Que é como quem diz que perdeu uma boa oportunidade para vetar uma lei de uma certa inspiração de «esquerda progressista». Com o resultado conhecido (Cavaco promulga a dita lei), brota então do chão um inominável representante de uma anónima maioria silenciosa que anda muito arreliada porque afinal os maricas já vão casar. Dizem-se católicos que afinal agora querem um presidente que seja mesmo de uma «direita católica».

Para dizer a verdade, eu não sei muito bem quais dos três foi mais estúpido: se D. José Policarpo com uma quase chantagem subentendida em relação às eleições; se esta «maioria silenciosa» que quer na Presidência uma raça que já não existe; ou se mesmo o próprio Cavaco, ao vir à televisão justificar uma decisão que, normalmente, lhe cabe todos os dias.

Dirão que exagero. Não tanto, não tanto. Só exaspero. Exaspero com a visão de um Portugal que sopra nas cornetas africanas enquanto paga aumentos de combustível na mesma Galp que lhas fornece, que aceita tudo o que vem de um Governo e de uma oposição passiva que lhes digam que é a única solução, que votem nos políticos bonitos e se recusem a votar nos feios, e que, por último, entra em pânico porque afinal alguém já vai poder fazer o mesmo que eles e ter acesso a certos direitos conjugais que só a eles importava.

Cavaco nunca foi «de direita», mas sim um candidato de um Partido Direita para dominar o «centro» do espectro partidário. Nunca foi um «político católico», mas sim um algarvio que por acaso é católico e que sempre teve posições relativamente conservadoras na sua vida política - e que até já resultou em bronca, para quem se lembra do episódio com José Saramago. E, mais importante de tudo, nunca foi um Presidente da República «de direita» nem «da direita», mas sim um candidato apoiado pelo PSD que tem governado para essa coisa amorfa e virtual que é a entidade «todos os portugueses e portuguesas», sendo até bastante imprevisível nos seus apoios e críticas públicas a não ser que leiamos as suas posições conforme as circunstâncias. Em resumo, sempre foi um político tout court, e não um idealista.

Por fim, quer se queria quer não, ao não vetar esta lei - que seria inevitável e não afecta quem já está casado nem quem é inteligente e se mantém solteiro - Cavaco evitou trazer à tona um debate que, com toda a sua importância e valor, só beneficiaria um Governo que quisesse deixar para segundo plano a actividade legislativa mais impopular e que mais afectasse a vida das pessoas. Ao promulgar a lei, Cavaco optou por beneficiar o maior número de portugueses possível e afectar o menor número (ai Jesus, os utilitaristas!) e, em última instância, acabou a beneficiar mais a sua candidatura do que a prejudicá-la.

Querem uma aposta?

27/05/10

Cidade gordurosa

O jornal O SUL de Maio já pode ser lido online. Vale a pena, pelo menos, espreitar o artigo do meu amigo e co-pessimista Tiago e, surpreendentemente, uma entrevista a Fernando Dacosta que revela um saudável desencanto e uma lucidez que não lhe reconhecia. Lá pelo meio, descreve assim Setúbal, onde tenho a sina de viver:

SUL – Que impressão tem de Setúbal, visto cá morar há um ano?
FERNANDO DACOSTA
– Deliciosa. Parece que estou em Lamego, onde fiz o Liceu há 50 anos atrás. É extraordinariamente castiça, afectuosa, gordurosa, ociosa, decadente, tudo coisas que eu gosto. Espero que a ASAE não venha cá, pois fe­­chava a cidade.

Nem eu o diria melhor.

A minha greve pessoal

Pessoas amigas avisam-me que está planeada para daí a um dia uma greve geral das empresas de transportes públicos. Autocarros e comboios. Setúbal, aparentemente, inclui-se. A advertência é por isso amável, principalmente porque sabem que sou um utilizador habitual dos mesmos, sempre que preciso de me deslocar à capital. O que, apesar de tudo, tende a ser habitual. Para minha infelicidade. Não que eu não aprecie Lisboa. Ou, pelo menos, as livrarias de Lisboa. Não. O que eu não aprecio é a viagem necessária para chegar a Lisboa.

Mas eu disse infelicidade? Disse mal. O termo mais correcto para exprimir aquilo a que me sujeito, por vicissitudes necessárias da vida, é tragédia. Dramatizo? Talvez. Mas isso agora não é importante.

O importante é que, regra geral, procuro locomover-me o menos possível e nas melhores condições possíveis. Sendo que não possuo transporte próprio e pessoal – como, por exemplo, um jacto –, a coisa torna-se, obviamente, complicada. Viajei uma vez, por comboio, de Lisboa a Castelo Branco (ao Fundão, na verdade) em primeira classe. A viagem foi um mimo. O silêncio. O espaço. A paisagem. O silêncio. Foram três horas que ainda hoje gostaria de estar a viver. Óbvio que, recriar tal façanha numa viagem para Lisboa é tarefa inglória. Não há silêncio. Não há espaço. Não há paisagem. É uma hora que eu agradavelmente dispensaria.

Trabalho de sofá


26/05/10

Passar os olhos pelo vazio

Passo os olhos pela SIC Notícias a altas horas da madrugada, num suspiro patético de saber novas da pátria. Por sorte, não há novas. Por azar, há José Pacheco Pereira a falar sozinho para o vazio. E nisto pergunto a mim mesmo: porquê?

Ponto Contraponto é o programa. Programa, aliás, que nunca vi por completo. E um minuto de leve atenção sobre o objecto relembra-me a razão. Ou melhor, a completa ausência de razões para alguém assistir a tal coisa. O homem disserta. Lança conjecturas. Cose premissas. Estabelece conclusões. Nomeadamente sobre o facto de o telemóvel ser uma nova dependência não sei para quem ou para o quê. E nisto pondero: fora a constatação óbvia, a quem é que isso interessa? Pior: o que diabo faço eu aqui a assistir a isto?

Na verdade, pior que ver alguém sozinho a falar para o vazio, é constatar que, afinal, o vazio é já a nossa cabeça.

25/05/10

Amor à camisola


Amor à camisola é...

... a selecção nacional estar a jogar pessimamente contra Cabo Verde e o comentador arriscar: «Isto até pode ser uma estratégia de Carlos Queiroz para não revelar muito da capacidade dos jogadores de Portugal».

Serviço público


Ser pessimista é um estilo de vida. Não um modo, mas um estilo de vida. Um pouco como fazer exercício ou não andar de barco. Dizem que o primeiro hábito é saudável. Com o segundo hábito, até agora, não me tenho dado mal. E continuo assente na crença de que andar de barco aumenta as chances de morrer afogado. E depois vem o terceiro elemento deste estilo de vida: o pessimismo.

Acreditar que tudo pode correr mal é a maior cura para a baixa auto-estima. Repare-se, só duas coisas podem acontecer: ou acertamos nas nossas previsões (o que é extremamente recompensador); ou temos uma boa surpresa, que escusado será dizer que também é sempre agradável.

Na verdade, eu deveria arriscar que, sendo eu português, não sou assim tão original. O português é tipicamente pessimista, ainda que goste de pequenas e efémeras marés de embriaguez, de confiança no futuro, um exclusivo dos povos sebastianistas (ou será que somos o único?). Manda tudo à fava, faz um manguito ao seleccionador nacional ou ao Primeiro-Ministro e diz que ou «não volta a votar nestes vigaristas» ou «ai dele que volte a pagar bilhete para vir à bola ver estes lanzudos». Depois, na hora H, muda de ideias, corre para a primeira fila e grita a plenos pulmões, num último delírio de Ícaro antes das asas derreterem e a desilusão inexorável surgir. Raios os partam a todos. Eu bem disse. Eu é que sou parvo. Nunca mais cá ponho os pés. Com o meu voto não contam mais.

Mas, se quisermos ser rigorosos, o pessimismo é a característica do bom português, que se quer desconfiado. É, até, uma faceta verdadeiramente literata, já que é prova de que se conhece o cavalo de Tróia e de que somos todos filhos, não de Adão e Eva, mas de Cassandra, e apadrinhados pelo Velho do Restelo.

Por fim, verdade seja dita, o pessimismo é a maior forma de optimismo. Para além da evidência de que só se pode melhorar depois de se tomar consciência de que já batemos no fundo, quando não se espera nada, só se pode ficar contente com o resultado. E quando se está no chão, só há mesmo um caminho: para cima.

Aliás, agora que penso nisso, deviam agradecer-nos. Com a nação de pantanas, esta injecção de pessimismo desconfiado é mesmo um serviço público que prestamos ao país.

De nada. Ora essa.

A arte de ser pessimista

A imaginação tem os seus limites. Na verdade, e ao contrário do que se possa pensar, a realidade, não raras vezes, tende a ser bastante pior do que à partida a imaginação concebe. E isto simplesmente para dizer que ser pessimista não é tarefa fácil. Ser trapezista também não. Mas isso agora não interessa.

A sociedade degrada-se. A crise, pelo que dizem, está por todo o lado e tem tendência a alastrar. É a crise económica. É a crise de valores. E é a crise de vestuário também. Aparentemente a coisa não parece ter grande solução. Para pior tudo isto, a Selecção Nacional de Futebol parece não ter um futuro particularmente radioso pela frente. Tudo é mau. Tudo é dramático. Eu nunca tive dúvidas.

Mas, objectivamente, estamos de facto assim tão mal? Na verdade podíamos estar pior. Na verdade, provavelmente, ficaremos bem pior. O futuro disso se encarregará. É só esperar para ver.

Perante tudo isto, pouco há a fazer. Eu pelo menos não pretendo fazer grande coisa. E fazer o quê? O melhor, talvez, é apreciar o circo de fora. Bem de fora. Não obstante o facto de eu também estar bem no seu centro. A culpa, juro, não é minha. Não comprei bilhete nem esperei convites para o mesmo. O circo é que foi sendo montado à minha volta. Eu, devo dizer, nunca deixei de aqui estar. Sentado. Se é que não mesmo deitado.

A verdade é que a realidade sempre foi assim. Se é que, de facto, não fora já pior. Perspectiva que, é preciso admitir, não deixa de ser de alguma forma optimista.

Ser pessimista não é tarefa fácil? Não. Ser pessimista não é mesmo uma tarefa fácil.