29/06/10

O grau zero da literatura



As exéquias de Saramago continuam. As revistas da semana, aliás, dedicam matéria extensa sobre o homem, onde toda a gente foi chamada a dar a sua opinião laudatória. Os tristes. Os pobres. Os coitados. Ninguém faltou. Sobre literatura, no entanto, ninguém achou digno dedicar uma palavra. Interessante.

Na verdade, compreende-se. Por entre elogios fantasiosos à pessoa e uma polémica artificial sobre a não presença de Cavaco Silva no funeral (polémica que o Torquemada pátrio, Francisco Louça, fez questão de inflamar e que num país civilizado não teria tido lugar) é difícil encontrar espaço para falar daquilo que realmente interessa.

Por isso não surpreende que ninguém tenha tido em atenção as palavras do Dr. Carlos Reis em pleno discurso fúnebre do Nobel. Que disse o Dr. Carlos Reis, especialista mor em Eça de Queiroz? Uma frase. Uma mera frase. Mas e que frase. “A grande literatura está fora do campo da moral.”

Uma pessoa ouve isto e morre. Eu morri. Várias vezes, aliás, enquanto a coisa não parou de ecoar na minha pobre cabeça.

Suspiro. Eis o grau zero da literatura. De facto, era inevitável. Principalmente quando se pede a um analfabeto que disserte sobre o assunto. Porque, na verdade, a grande literatura não está fora do campo da moral. Pelo contrário, a grande literatura é, sim, geradora de novos planos morais. Ela trata do Humano. E o Humano não está nunca fora do campo da moral. Eça de Queiroz, por exemplo, sabia-o. Que o Dr. Carlos Reis ainda não o tenha percebido só demonstra a excelsa qualidade académica dos seus estudos.

Para uma leitura (mais) séria

Sobre o Conservadorismo, uma leitura recomendável.

Poderemos dizer, em conclusão, que as exigências da política são as exigências de uma tradição; porque todos os problemas são percebidos no interior de uma tradição. Feliz será a sociedade que se mostrar capaz de preservar as suas tradições úteis e benignas; porque serão essas mesmas tradições a apontar os caminhos possíveis para a resolução dos problemas mais imediatos.

Em Busca do Equilibrio, por João Pereira Coutinho. Na Dicta&Contradicta.

26/06/10

Separados à nascença


À esquerda, Jorge Fucile, jogador uruguaio do F.C. Porto.

À direita, Justin Long, o tipo dos Transformers e do decepcionante Youth in Revolt.

Ou será ao contrário? Enfim, não me digam que sou eu que tenho a mania das parecenças.


P.S.- afinal lembram-me que o menino Long não entra no Transformers. É verdade. Erro meu, que o confundi com o LaBoeuf. Simultaneamente, confundi os Transformers com o Die Hard 4. É natural: explosão por explosão, acabam todos os filmes a parecer o mesmo.

25/06/10

O óptimo é inimigo da cobra

É perfeitamente sabido (entre amigos) que tenho um medo tremendo de cobras. Aliás, acho que quem criou tudo isto criou também as cobras para servirem de némesis da Humanidade. Agora fica a pergunta: de todo o raio de bicho que há por esse planeta, porque diabos tinha de ser, precisamente, uma cobra a cruzar-se comigo num passeio de Lisboa?!

Estou amaldiçoado. Estou mesmo, Sei-o agora.

P.S.- tire o cavalinho da chuva quem pensava que este post vinha com imagem a condizer.

Viagem ao centro da burocracia


Nas duas últimas semanas fui ao abismo e voltei. O que, em língua portuguesa, é expressão idiomática para dizer: nas últimas duas semanas nadei com tubarões e burocratas nas repartições de Portugal. É belo e poético. É mesmo uma bela experiência. Ai, como eu adoro burocracia.

A semana passada até correu bem. Burocraticamente falando, claro. Andei em centros de saúde, exames médicos e repartições de finanças, o que até já demorou mais tempo. Acredite-se ou não, ir às Finanças, quando estas têm ar condicionado e tectos altos, é um pouco como a salada ou os aperitivos da burocracia: custa, dizem que «tem de ser», mas não chega a encher. Perder menos de 30 minutos numa repartição? Caras leitores e caros leitores, em Portugal... isso é obra.

Mas, se eu estava despachado do Estado, o Estado, esse, não estava satisfeito comigo ainda. Tal como Michael Corleone em The Godfather III: «Just when I thought I was out... they pull me back in!». E puxaram-me. Semana nova, vida nova: centro de emprego, Segurança Social, Loja do Cidadão, etc, etc, etc. Para dizer a verdade, penso que corri todos os capítulos do Processo do Kafka. Com direito à mal-disposição do Joseph e tudo.

Resultado: declarações que dizem o óbvio - nada; dores nas pernas; irritabilidade superior ao normal (a minha úlcera já chora); um acréscimo de ódio pelo Estado central.

Por fim, uma última dúvida: se o Estado central se chama «central», porque é que os serviços não estão mais centralizados ou em contacto entre si e eu é que tenho de andar a fazer de correiozinho entre as várias repartições? Fica a pergunta.

Agora é aguardar. Seguinte!

23/06/10

Trabalho de sofá

22/06/10

Bilhetes de Colares IV

«(...) nisto da influência dos pais, vale tudo menos tirar olhos, sobretudo desde as congeminações do curandeiro de Viena. Se um homem se parece com o que o pai dele era, explicam-nos que ele é assim porque o pai também o fora; se um homem mostra ser o oposto do que o pai tinha sido, explicam-nos que ele é assim porque o pai fora exactamente o contrário. As ciências humanas são ainda muito incertas.»

- José Cutileiro, Bilhetes de Colares de A.B. Kotter (1993-1998)

P.S.- caros leitores, para não haver dúvidas, o «curandeiro de Viena» é, como estarão a pensar, precisamente o Dr. Freud.

20/06/10

Pausa para reflexão

19/06/10

Mediocridade é...

Mediocridade é uns quantos jornalistas andarem de poiso em poiso a entrevistar políticos banais, em relação ao tema... José Saramago, também ele um escritor banal. Pior ainda é a escolha de perguntas dos jornalistas: «acha que a morte de Saramago é uma grande perda para Portugal?», «consegue quantificar [juro que foi esta palavra que ouvi!] a perda que é a morte de Saramago?», «qual era o lado humano [o lado não-comunista, presume-se com a expressão cretina] de Saramago?», e por aí fora.

Eu, reavivando por momentos o meu lado optimista, ainda esperei que perguntassem à pessoa errada. A um deputado, talvez, mais ousado. Mais fora do comum. Mais desinteressado, que se estivesse marimbando para a sua imagem. Em vão. Desiludi-me uma vez mais. Em Portugal não há políticos com gostos e opiniões pessoais (quando virá o «nosso» Boris Johnson português?), apenas gostos de classe, de profissão e de bloco ideológico. E fica-se por aí.

Somos um povo medíocre. E, assim, como o classificou o Tiago muito bem, é apenas lógico que nos colemos na perfeição à imagem de Saramago, um escritor, ele próprio, «medíocre».


P.S.- que não se confunda a minha ferroada a Saramago com qualquer mau gosto, como se dançasse a lambada em cima da tumba do homem. Nada disso. Não gosto de pilhar a memória de quem morre, mesmo daqueles de quem não sou fã. E é apenas digno da minha parte, e uma boa forma de honrar Saramago nesta hora difícil da sua vida (caraças... saiu-me), ser honesto: Saramago escrevia decentemente, mas não sabia comunicar; tinha ideias interessantes, mas cujas parábolas deveriam ocupar uns oito versículos e não livros de trezentas páginas; não sei se era boa ou má pessoa, mas nos saudosos anos 70 lixou a vida a muito boa gente no sujo mundo da imprensa; finalmente, a canaille fazia melhor em admitir que viam nele mais o cavalo vencedor do que um escritor sedutor ou por demais interessante, que não era. Quanto ao próprio José Saramago, só posso dizer isto: boa viagem, encontramo-nos todos no outro lado, se o houver.

Um qualquer José Saramago


Perdeu-se um escritor medíocre. Num mundo perfeito, tal seria uma mera notícia de rodapé. Os amigos recordá-lo-iam. Os inimigos também. Escrever-se-iam duas linhas. Um adeus. Um agradecimento. Pelo esforço. Pela tentativa.

Mas este não é um mundo perfeito. Neste mundo em que vivemos, a mediocridade é leitura obrigatória dos imberbes, recebe prémios que outrora tiveram significado e enche páginas laudatórias de jornais. Afinal descobre-se que o escriba só tinha amigos. Os inimigos (poucos, poucos), coitados, não passam de meros invejosos.

A pátria chora. Uma mediocridade desapareceu. A pátria chora sempre nestes momentos. A pátria, na verdade, sempre gostou do dramatismo destes momentos.

E isto porque morreu José Saramago (1922-2010). Militante comunista, que sempre defendeu a «democracia» cubana e fez de seu apanágio o insurgir-se contra a censura à sua pessoa. Que ele próprio tenha sido um reconhecido censor à pessoa dos outros é apenas um pormenor. Afinal, até nisto ele era um homem igual aos outros.

Escritor anteriormente meramente suportável, com o Prémio Nobel da Literatura tornou-se uma figura reverencial. Os «especialistas» surgem. Os «especialistas» explicam. Saramago era um escritor de «ideias» que «revolucionara» a escrita. Que as suas ideias tenham sido insuficientes para encher um conto de duas páginas e que a sua escrita revolucionária fizesse da leitura um acto impossível, obviamente não os perturbou, nem, aliás, se espera que os venha a perturbar. O Nobel, afinal, fora merecido. Por tudo. Por nada.

E pelo Nobel será lembrado. Pelo Nobel, aliás, ganhou uma última viagem num avião militar que o trará a Portugal, onde algures passarão a repousar as cinzas.

E eu? Eu aqui fico, a deleitar-me com os duzentos programas especiais de documentários, entrevistas e balanços sobre o homem que a televisão, benza a Deus, não me deixa desprezar. Afinal, bem vistas as coisas, nem tudo é uma perda.

Pep Talk


Deco ignora ‘grito de guerra’ de Queiroz. Eu próprio, devo dizer, fiquei mortinho de motivação. Bem mortinho.

18/06/10

A mania das «social skills»

Lido por aqui, no blog do Joel Neto:

[...] Aos nossos iguais simplesmente não dizemos nada: engolimos e tornamos a engolir, convencendo-nos de que do outro lado está, afinal, um pobre diabo, tão pobre que nem sequer merece uma zanga – e, quando enfim nos zangamos, é para dar-lhe um tiro na cabeça, como todos os dias nos mostram os jornais.

A impressão com que eu fico é que tudo isto vem dessa mania das social skills e do team building e dos demais chavões moderninhos que os gurus dos livros de economia nos enfiaram pela garganta abaixo, na intenção de nos automatizarem de vez. Resultado: andamos todos a rebentar por dentro, impossibilitados de rebentar para fora – e, quando explodimos, já não há nada a fazer. No essencial, os que nos rodeiam nunca são apenas homens, com valências e lacunas, com cobardias e actos de coragem: ou são anjinhos ou são tremendos filhos da puta (assim mesmo, sem meio termo). “Não respondas”, aconselham-nos os sábios. Não dês troco. Não ligues. Não percas a cabeça. Tens de ser superior. E, inevitavelmente, viramos todos uns diplomatazinhos de esquina, sem capacidade para dar um grito e a seguir fazer as pazes. Tornamo-nos ainda mais hipócritas do que aquilo a que a nossa contraditória condição já nos obrigava. E transformamo-nos, claro, em bombas-relógio. [...]

A Deus o que é de Deus, e já agora também o que é de César


N'A Origem das Espécies, Francisco José Viegas tem uma visão interessante de um novo «movimento» que por aí anda. Por vezes subtil, outras vezes com mais garganta, o dito «frentismo católico» (expressão de Viegas) parece estar-se a levantar por aqui e por ali e a fazer uma tal pressão sobre Bagão Félix para este ser o «candidato católico» que, por momentos, me veio à cabeça a imagem de um cão que finca os dentes nas calças do carteiro e já não larga.

Para além de me fazer espécie, obviamente, este regresso da distinção entre «bons católicos» e «maus católicos» (listagem, aliás, à qual sou indiferente visto não estar à espera de camarote no Éden), há algo mais grave, de que já se falou aqui longamente no blog: é a Igreja Católica andar a torcer o nariz ao velho princípio de deixar «a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César».

Não tresleiam e confundam as minhas palavras. Não tenho nada contra a Igreja «ter voz» na sociedade. Ter voz, opinião e lobby face aos novos desafios morais da sociedade portuguesa - desde a aceitação das uniões homossexuais à questão da eutanásia que, certamente, aí vêm a seguir - é um direito que a Igreja, na qualidade de instituição e comunidade, tem. Eu diria mais, é um dever moral para com a sua comunidade católica. E, como sabemos muito bem, quando o Cardeal-Patriarca fala, a solenidade da comunicação é pouco menos importante que a das comunicações do Presidente da República. Com interesse ou não, o que importa é que as pessoas ainda ouvem. Já dei por mim a gastar o meu valioso tempo em jogos de futebol com bastante menos interesse.

Agora, algo inteiramente diferente é tentar «chamar as tropas à guerra» de uma forma mais efectiva. Ou seja, se um Papa discorda com a guerra, a solução seria intervir moralmente na crítica ao conflito, mediando a diplomacia, tentado fazer acordos e condenando a violência (eu sei que não serve de nada, eu sei...), e não, como D. José Policarpo parece agora pensar, formar o seu próprio exército e participar na refrega. Como nota Francisco José Viegas, o entusiasmo em redor da visita de Bento XVI parece ter acordado a costela interventiva da Igreja em Portugal, que agora se viu, juntamente com o tal «frentismo católico», «com água na boca e o desejo de transformar em força eleitoral o que era uma "demonstração de fé" (...)».

Eu, que sou pouco desta coisa de bater no ceguinho que já é a Igreja Católica - e os católicos - em Portugal, já começo a partilhar de alguma desconfiança, real, face à nova atitude da «Igreja que se quer fazer partido». Não vou pela via dos que acham que há uma conspiração da «direita católica». Não chego a tanto. Mas já começo a questionar a tradicional bonomia dos católicos portugueses pós-25 de Abril. É que D. José Policarpo, que eu julgava sábio e experiente, parece andar esquecido de um facto histórico importante: em Portugal ainda há muitas feridas por sarar no que toca a candidatos saídos de centros académicos de democracia cristã.

O fim do Euro

As piores Cassandras já atiraram foguetes ao ar. Outros recusam-se a acreditar e congelam. Outros continuam mergulhados num lago de optimismo e não vêem, não querem ver ou não querem mostrar aos outros o que realmente conseguem entrever para o futuro próximo: o possível fim do Euro e, quem sabe, da União Europeia. Outros ainda, como eu, não sabem muito bem o que achar mas, pior ainda, não se decidiram ainda muito bem se essa funesta possibilidade é melhor ou pior do que aquilo que temos actualmente.

Para ajudar a clarificar, no entanto, temos Niall Ferguson, que anda atento ao que se passa na União Europeia. Com a crise que está a assolar o sistema monetário europeu, com epicentro mais preocupante na Grécia, o historiador escocês traça uma «biografia» do Euro desde o projecto inicial de moeda única europeia até hoje, em que lança um dilema, e simultaneamente um desafio, aos fãs do federalismo europeu: vão continuar com a ilusão de uma moeda única sem sustentabilidade ou completam a integração dos sistemas fiscais numa autoridade tributária centralizada na sede da UE?

Fica aqui uma pequena amostra do artigo de Niall Ferguson, a ler:

«Crisis—from the Greek "krisis," for a turning point in a disease—is one of many English words we owe to the ancient Athenians. Now their modern descendants are reminding us what it really means.Just when it seemed safe to start using the word "recovery," a Greek crisis is threatening the world economy, and the very existence of the world's second-biggest currency.

The euro seemed like such a good idea just 10 years ago. Europe had already achieved remarkable levels of integration as a trading bloc, to say nothing of its consolidation as a legal community. Monetary union offered all kinds of alluring benefits. It would end forever the exchange-rate volatility that had bedeviled the continent since the breakdown of the Bretton Woods system of fixed rates in the 1970s. No more annoying and costly currency conversions for travelers and businesses. And greater price transparency would improve the flow of intra-European trade.

A single European currency also seemed to offer a sweet trade. European countries with problems of excessive public debt would get German-style low inflation and interest rates. And the Germans could quietly hope that the euro would be a little weaker than their own super-strong Deutsche mark.

Monetary union had geopolitical appeal, too. In the wake of German reunification, the French worried that Europe was heading for a new kind of domination by its biggest member state. Getting the Germans to pool monetary sovereignty would increase the power of the other members over a potential Fourth Reich. And, best of all, it would create an alternative reserve currency to challenge the mighty U.S. dollar. (...)»

16/06/10

O homem que confundiu a mulher com um referendo

Da discussão em redor da promulgação do diploma do casamento gay passou-se ao perfil de Cavaco. Daí passou-se ao papel do Presidente e do Parlamento. Daí passou-se ao referendo, ao regime, à democracia e, como quem não quer a coisa, aos insultos. Nada contra. Sou um apologista do insulto. Mas também gosto de discussão palpável.Coisa que foi escasseando nos últimos posts.

Ora, assim como o Lucky Luke competia até com a sua própria sombra, também o Tiago não consegue evitar os duelos de pistolas em tudo o que é sítio, com um pouco de paranóia à mistura. Suspeito que, à maneira das terriolas do interior de Portugal, o Tiago, por via das dúvidas, vai votar de pistola na casaca, não vão as circunstâncias obrigá-lo a aplicar o seu conceito de democracia.

No entanto, caros leitores, não temam. A discussão está, pelo menos por agora, sanada. O Tiago tem a perspectiva dele, eu tenho a minha. A partir do pressuposto, comum a ambos, de que o regime parlamentar é «o melhor dos mundos possível», eu e o Tiago concordámos em discordar. Sem qualquer síndroma de Pangloss. É o melhor, mas está cheio de buracos.

Como já fui dizendo aqui, aqui e aqui, a minha posição pessoal é relativamente clara: estou satisfeito com a forma do regime que temos - democracia parlamentarista ou representativa - mas não com o «estado da democracia», e agradam-me petições e pedidos de referendo mas não acho que seja preciso um referendo para tudo. E reparem que disse que a minha posição era «relativamente» clara. Relativamente, apenas, porque não tenho, aqui ao meu lado, na secretária, um manual de liberalismo, ou de social-democracia, ou de marxismo, ou de federalismo ou do quer que seja para me ajudar a decidir melhor, e de forma mais coerente, sobre os dilemas e desafios que vão vindo na minha direcção. Gosto de decidir intuitivamente e pontualmente, mesmo que muitas vezes fuja a fórmulas, à lógica e, até, embora esperançosamente por raras vezes, ao bom senso.

Assim, e porque neste blog não é preciso recorrer aos referendos, vamos continuar a actividade normal, sem necessidade de converter uma das partes à vitória da maioria (que não há... ainda), e com a eterna possibilidade de cair a espernear. Aqui, o povo não decide. Decide cada um por si mesmo e vai-se à guerra. Sem baixar os braços. Porque é assim que a democracia deve ser.

15/06/10

Bilhetes de Colares III

«A Mãe gosta de ir à Feira da Malveira e, mázinha, diz que não conhece lugar onde se veja tanta gente feia como lá. É uma teoria da Mãe que o povo feio do mundo é o português; que, dentro dele, os saloios levam a palma aos outros e que o sítio onde se juntam mais saloios é a Feira da Malveira. Devo esclarecer que os povos, para a Mãe, são só brancos: remete os das raças restantes - com as araras, os Pinche Dobermen, as tartarugas - para outra arrumação. Lembro-me de uma noite em casa do Bobsy, coitadinho, Deus lhe tenha a alma em descanso, a Senhora ter ficado furiosa com o Gonçalo Caldeira Coelho, por ele garantir que encontrara, há muitos anos, no Daomé [actual Benin], preto inteligente e civilizado. Esteve não sei quanto tempo sem lhe falar.»

- José Cutileiro, Bilhetes de Colares de A.B. Kotter (1993-1998)

Um truísmo aparentemente necessário

O João, parece, diverte-se a distorcer as minhas palavras e a baralhar tudo. Eu próprio, devo admitir, já estou baralhado. Com ele, claro, que pensava que era individuo para ter ideias mais organizadas. Assim, para evitar que a sua pobre cabecinha entre novamente em curto-circuito, tentarei manter a coisa simples.

É verdade que o João gosta da «sociedade civil à americana». Na teoria. Na teoria. Aquela que está «na rua», mas não é «anónima». Aquela que faz «pressão», mas uma pressão muda. Aquela que contacta com os «políticos», mas, no fundo, não se deixa ver. É uma perspectiva interessante, ainda que, suspeito, pouco prática.

O João não gosta de referendos. Embicou aí (ainda que, esse assunto, seja apenas lateral). E deseja embicar comigo por aí. Porque eu os considero «instrumentos». Naturalmente que, na sua triste casa, ainda não se inventaram instrumentos de alimentação. Garfos e facas. Copos e pratos. O homem, coitado, ainda come à mão, provavelmente em memória de tempos mais felizes.

Nada contra. Cada um corta o bife como gosta e pode. No entanto, sou forçado a afirmar o óbvio. E o óbvio é que, os «instrumentos», por si, não são positivos ou negativos. São neutros. Servem uma função ou um objectivo. Os quais, claro, podem ser nobres ou deploráveis. O Parlamento, aliás, é um instrumento da democracia parlamentar. Tal como o voto electivo. E tal como o referendo ou uma petição. O João, aparentemente, acha que não.

Por isso se torna mais que evidente que não é necessário e impreterível o referendo para que haja uma participação política da sociedade. Eu nunca o afirmei. O João é que julga que sim. Que fazer?

Mas eu disse que aceito tudo o que vier de uma maioria? Nem estive lá perto. Disse apenas que, num regime democrático, a maioria governa. Estalou o escândalo. Estalou a incredibilidade. A sério? A sério. Porque uma maioria parlamentar (imagine-se absoluta, até entre vários partidos se se desejar) representa uma maioria representativa (também absoluta) da sociedade, e que por isso necessariamente vincula uma minoria nas suas opções e decisões. Acontece. Aliás, já aconteceu. Porque o jogo democrático sustenta-se, exactamente, no peso e na força da maioria.

Por isso o problema das «liberdades e garantias» do indivíduo é um problema que não está imediatamente relacionado com o regime. E por isso, ao contrário do que o João brama entusiasticamente, eu não confundo «democracia» e «liberdade», apesar, claro, de existir tendencialmente uma relação. Nomeadamente a de se a democracia pode ou não potenciar uma maior liberdade (a mesma não é um conceito absoluto) do indivíduo.

Razão simples: o tipo de democracia depende nós, enquanto sociedade. E de quanto nós, enquanto sociedade, privilegiamos ou não as nossas liberdades. Por isso uma democracia pode, naturalmente, ser «iliberal». Este é, aliás, um risco por demais conhecido, e não uma descoberta recente do sr. Fareed Zakaria, que o João muito aprecia.

Termino. E termino com um truísmo que pensava desnecessário. Eu aprecio a democracia parlamentarista. Não me imagino, aliás, a viver noutra. No entanto, não considero que a democracia comece e acabe no Parlamento, mas sim que ela começa e acaba em nós, enquanto agentes activos dessa mesma democracia respeitadora das liberdades que desejamos preservar. Porque o Parlamento é um microcosmo da própria sociedade. Representa-a, mas não a substitui. E imaginar o inverso é imaginar uma realidade perigosa.

Com os copos, Miguel Esteves Cardoso

Miguel Esteves Cardoso, parece que não, é muito esquecido neste país. Culpa nossa, naturalmente. E culpa dele também, que, vai na volta, quase que desaparece de circulação. Aparentemente para ir trabalhar para um «bar» de «pequeníssima mas airosa esplanada» de Lisboa.

Pausa. Coçadela de cabeça. Eu disse bem? Confirmo e repito: o homem, pasmem-se, tornara-se «barman». Como foi isso acontecer? A resposta ilude-me. Em todo o caso isso não é o mais importante. Mais importante é perguntar porque razão ninguém me avisou, já que, por acaso, não me negava a um copo.

[Continua aqui, Orgia Literária]

14/06/10

Ensinar História com pés e cabeça

Ao que parece, Niall Ferguson estará a ser sondado para planear os novos programas de História no ensino liceal britânico. Aceitando a existência de planos únicos para todo o país, ao menos a escolha de alguém com cérebro para o fazer é já uma boa notícia.

Fica aqui o excerto de um artigo seu, no Financial Times, com cerca de dois meses, precisamente sobre a questão da pobreza do ensino da História:

«(...) Now, nobody wants a return to the kind of mind-numbing history that used to be taught a generation ago – those strings of facts and dates, one damned thing after another, half-memorised by comatose pupils and famously lampooned in WC Sellar and RJ Yeatman’s 1930 classic, 1066 and All That.

It’s no coincidence that the most boring teacher at Hogwarts in JKRowling’s Harry Potter books is the history teacher, Mr Binns, whose lessons about the goblin wars are so tedious that he himself has died of boredom without noticing.

Yet when you find out what most of today’s teenagers are taught as history, you realise that decades of educational reform have made matters worse. Most strikingly, there is no meaningful connection between what is taught to students in the early years of secondary school (called Key Stage 3), at GCSE and at A-level. “Our island story” was far from ideal. But now there is simply no narrative arc at all. (...)»

O óptimo é inimigo do bom


Propôs-se o Tiago a missão de me açoitar. Assim seja. Não é, propriamente, a minha ideia de diversão, mas nunca digo que não a fazer um amigo feliz. Vamos lá.

Diz-se no post de contra-ataque que eu, no fundo, revelo incoerência ao gostar muito de uma ideia de sociedade civil de inspiração americana mas, por outro lado, não dar importância aos referendos. Não percebo onde está a incoerência. E o Tiago até me ajuda no raciocínio ao referir que os referendos são «instrumentos» desta «forma de fazer política». E aqui «instrumentos» é a palavra chave. Pela negativa, claro.

Ora, a pergunta que faço, e de forma retórica, é esta: desde quando é preciso um referendo para haver participação política? E, mais importante ainda, desde quando é preciso ir a votos (em consultas populares entre eleições) para fazer saber que se está descontente com algo ou que se quer algo? A «sociedade civil» é, precisamente, aquela massa de pessoas que se avoluma - preferencialmente com nomes de referência, e não uma massa «anónima» - fazendo pressão até sobre governos que fazem ouvidos moucos. Ou seja, para mim a «sociedade civil» está na rua (embora seja preciso algum cuidado com esta expressão) e no contacto com os políticos, e não necessariamente em mágicas votações de «winnter takes all». E explico porquê.

A democracia, em geral, é imperfeita. Certo. E, sobretudo, pode passar uma esponja por cima de todas as más decisões que forem tomadas no seio de um destes regimes. Ora, o que o Tiago aceita, enquanto inevitável estado das coisas, é que, seja qual for o resultado da escolha da maioria, deve-se aceitá-lo, porque a maioria das pessoas assim o quis, o povo é quem manda e a democracia é mesmo assim. «É a vida», parece o Tiago querer pedir emprestado ou saudoso (ou não) Engenheiro Guterres.

O problema é que noto nas palavras do Tiago, ao longo dos vários posts sobre este assunto (ou associação livre de ideias e temas), uma certa rendição à democracia per se.Ou seja, quem o ouve falar, ou o lê, e se deixa convencer pela sua fé nas leis de causalidade da democracia, fica a achar que se vive muito bem em qualquer país, com as mínimas condições económicas, desde que haja democracia. «É a vida». Mentira. Não pode ser a vida. O problema dos referendos (ainda que perceba que os cidadãos procurem pedi-los) é que vinculam as minorias ao que as maiorias decidem, de forma quase inquestionável. Porque o povo, ou a sua maioria, decidiu. E o povo unido decide sempre bem, mesmo que esteja errado. «É a vida». Mentira, uma vez mais. O próprio Fareed Zakaria - um respeitável (para mim) editor da Newsweek - deambulou pelo conceito de «democracia iliberal» no seu famoso e interessantíssimo livro O Futuro da Liberdade, precisamente porque, com exemplos recentes como os da Rússia e da Venezuela, no futuro próximo veremos brotar, em todo o Mundo, novos e antigos regimes com esta nova e dupla natureza: democráticos e iliberais.

Devo dizer que não me surpreendo com a confusão entre a existência de democracia e a garantia de liberdade(s). Surpreende-me um pouco é que um tipo inteligente e obstinado - daqueles que facilmente aguentam o epíteto de cínico por teimar em ser sensato - vá bater à porta da confusão de termos que é tomar «democracia» por «liberdade». Ou comprar gato por lebre. Como muito bem refere Zakaria, o «óptimo é inimigo do bom». Ou seja, querendo procurar a «vontade do povo» em todos os assuntos, de forma directa, pode levar ao cerceamento de liberdades básicas a muita gente e, mesmo, à ingovernabilidade de um Estado. Caso este que, dizem muitos, poderia ser o do Estado da Califórnia, que fez das propositions quase uma forma de vida. Nada contra, por princípio. Mas tem resultado? Não.

A mim importa-me, sobretudo, que se negoceie qualquer alteração à lei, qualquer proposta, qualquer medida. Negociando através de tipos que se pedem que tenham educação e formação para decidir em nosso nome durante uma legislatura. E confiando, em última instância, nos políticos que foram eleitos para lá estar. Se os políticos são maus, se há falta de responsabilidade e de representatividade para com os eleitores, a culpa é dividida, pelo menos e em iguais doses, por duas partes interessadas: partidos políticos e população. Os partidos, porque deram cabo da ideia de ir buscar os melhores à sociedade civil. A população, porque continua a votar nos mesmos em vez de arriscar e votar em em, ou mesmo formar, novos partidos.

Se é utópica a minha ideia de melhorar o regime e a responsabilidade aos poucos, em vez de querer que as maiorias decidam a minha vida por uma pergunta de «sim» ou «não»? Sim, é. Mas é também aquilo a que se chamou o contratualismo, que continua a ser a menor maneira de proteger os direitos e as liberdades de todos, e não apenas do «maior número possível». E continuo a achar que, num Parlamento reformulado e mais representativo, é que está a solução.

P.S.: corre o rumor de que de um duelo ao pôr-de-sol, este vosso escriba genial tombou. Calúnias infames. Estou vivo e bem vivo. Ferido, mas inteiro. E trago o escalpe do meu rival (que, pelas parecenças a Jorge Jesus, alguns sportinguistas já me pediram para pendurar na parede da sala) como prova. O meu opositor, vaidoso e elegante, escolheu a espada. Eu, desonesto e prático, escolhi a pistola. Indignam-se aqueles que, quando propus que ele escolhesse a arma, pensaram que ele estava a escolher as armas. Semântica, caros leitores. Semântica.

13/06/10

Inspiração matinal

Estela Machado
Bom Dia Portugal (fim-de-semana), RTP1
Completamente rendido e vagamente apaixonado... 

E o resto é conversa

Diz aqui o João que as minhas palavras lhe deixaram um «desire to walk on all fours». Compreende-se. A salivação que ele demonstrou não deixa de requerer uma posição primária. Eu próprio, devo admitir, simulei a pose em busca de inspiração condigna para uma merecida resposta.

Eu sei que o que o João quer é conversa. É discussão. É polémica. Nada contra. Aliás, eu, como bom amigo que sou, até tenho grado em lhe fazer a vontade. Pena é que ele a queira, de forma espúria, fazer à minha conta. A mim, coitado, que não faço mal a ninguém. E para quê João? Para seres açoitado publicamente? Pronto. Seja. Mas só porque sou teu amigo. E um bom amigo.

Afirma o João que aprecia a «‘sociedade civil’ à americana». Estranhamente, eu também. Não deixa é de causar pasmo que, para o João, nos States a «sociedade civil» não organize petições, não se mobilize e não crie lobby’s. Para defender os seus legítimos interesses. Para defender as suas legítimas convicções. Os referendos, aliás, não são mais que instrumentos desta forma de fazer política, que muitos Estados americanos, na verdade, até praticam (propositions, anyone?) – inclusive (pois é, João) sobre matéria de impostos.

E, no entanto, parece que, na mente do João, eu represento alguma forma de «jacobinismo» (acusação, aliás, antiga e que, suspeito, nunca ficará velha) que sonha com uma democracia televisiva. É preciso dizer que, a ser verdade, o João também. Com uma diferença. No meu, os programas são apreciados em directo por todo o «público». Nos do João, os programas são gravados para seu deleite privado. O João está longe. O João, para os membros do programa, não existe. E ele? Ele contente, como quem vê repetições do ano passado. A sua participação resume-se a carregar no comando – On. Off. On. Off. – Numa diversão pessoal que não tem limites. Porque, para ele, se o «público» não manda em nada, a solução é simples: é retira-lo do cenário.

Faz sentido. O João desconfia da «voz popular», uma vil canalha que não percebe nada. Estranhamente ele não suspeita do apresentador nem dos concorrentes, os quais, por alguma razão estranha parece que percebem muito de alguma coisa.

Pessoalmente mantenho uma posição mais sã. Desconfio de todos. Sem excepções. Por isso não admiro em êxtase uma democracia representativa que vive em deslumbramento consigo própria. Por isso prefiro uma democracia que não limita a participação política quase exclusivamente aos partidos, e que não vive fechada no Parlamento onde os interesses partidários inevitavelmente se tendem a sobrepor aos interesses do eleitor, fazendo deste um mero espectador de um programa que não pediu nem desejou.

É claro que, se para o João a democracia parlamentarista não é perfeita, urge-se a uma solução: talvez «alterar o regime» (a solução de sempre) e começar a fazer «pressão directa» sobre o Parlamento (talvez acampando à sua porta, ainda que em voto de silêncio). Porque o João cisma em não perceber que os riscos da democracia parlamentar se prendem com a inexistência de uma «sociedade civil» que seja capaz de se impor como uma força de contrabalanço a um Parlamento que, naturalmente, para se dignificar, fomenta uma ideia de que só ele é necessário. Só ele é requerido.

Exactamente porque tenho uma desconfiança natural para com o poder, tenho uma preferência por uma democracia que institui instrumentos que possibilitem uma participação directa dos cidadãos e que não relegue toda e qualquer decisão para uma ordem superior a eles.

É claro que, o João, suspeito, sobre isto não terá grande opinião. Aliás, o João, suspeito, a partir de hoje, até agradece que não lhe peçam mais qualquer opinião. Pelo menos até se mudar para o Parlamento. 

P.S.: Para os interessados, devo ressalvar que este diferendo já foi razoavelmente sanado. O mesmo incluiu pistolas e um duelo ao pôr-do-sol. Resta dizer que, ao contrário do que é aqui dito, só um, na verdade, sobreviveu.

12/06/10

Manual de sobrevivência

Costuma-se dizer que «nem só de pão vive o homem». Mas confesso que, depois de um dia inteiro afogado em familiares de que só conheço o nome, e em ritos religiosos e sociais que só me fazem bocejar, foi apenas o «pão» (e a inevitável barriga cheia) que me fez aguentar o dia até ao fim.

Enfim, sobrevivi.

11/06/10

Bilhetes de Colares II

«A Mãe, impulsiva por natureza, já me tem ralhado: «O menino, com essa mania de não dizer mal dos comunistas, parece o Carmona.» Devo explicar que a Senhora chama Carmona a todos os presidentes de Portugal, numerando-os para os distinguir uns dos outros. Vai agora no sexto, «conhecido nas repartições por António Ramalho Eanes», acrescenta, para meu maior embaraço, quando temos visitas. Também não é fácil como às vezes se julga em Portugal ser filho da Mãe.»

- José Cutileiro, Bilhetes de Colares de A.B. Kotter (1993-98)

Hoje começa isto


E eu, como devoto campónio que sou, mesmo quando não assistir aos jogos, vou estar sempre a espreitar o resultado. Porque por futebol entre selecções, admito... perco-me.

10/06/10

Leituras


Quem acompanhou a série The Pacific, da HBO, saberá o que isto é. As memórias de guerra de Eugene Sledge, um ex-marine que também foi focado como protagonista da série. Recomendadas.

Retrato do artista porno enquanto jovem


De como a estupidez de «educadores» e políticos traumatizará crianças que ainda nem se preocupam com estes assuntos. A ver, no i e em outros jornais, os manuais que ensinarão as crianças entre 6 e 12 anos a «pôr o pénis na vagina». No jornal Sol:

«Porque ambos estão muito apaixonados, o pénis do homem endurece e incha, de modo a poder entrar na vagina da mulher, que, entretanto, fica húmida e acolhedora. Chama-se a isto uma relação sexual.»

Do que eu tenho a certeza é que se, aos 6 anos, alguém me dissesse isso, eu nunca mais tocava naquelas coisas. Ou então:

«Mas o sexo também pode acontecer quando não existe amor. Isso é uma escolha pessoal, uma forma de estar na vida que devemos respeitar.»

E que tal deixar às crianças o trabalho de crescer e fazer as suas escolhas morais segundo o seu critério e o exemplo das pessoas que as rodeiam? É que eu posso ser daquelas pessoas que acham que isto é perfeitamente desnecessário. Mas, opiniões pessoais à parte, é certo que teremos mais a perder (moral, modelos familiares, a descoberta sexual) do que a ganhar com a introdução de Educação Sexual nas escolas antes dos 15-16 anos. Por duas grandes razões: primeiro, não consta que a gravidez adolescente tivesse diminuído em países que adoptaram esta ideia; segundo, é sabido que o ser humano nunca foi bom em aplicar boas intenções à prática, e este, não tenho dúvidas nenhumas, será um caso trágico, do qual só veremos resultados daqui a dez ou vinte anos.

A Democracia do Tiago


Concordando eu com a maior parte das coisas que o Tiago diz sobre o Presidente - à excepção do que já disse aqui -, passo à questão do regime e dos referendos.

O Tiago volta a bater na mesma tecla: a democracia parlamentar é imperfeita, mas só a temos porque não há melhor. Um bocadinho à laia do truísmo de Churchill, que dizia que «a democracia é a pior forma de governo, à excepção de todas as outras». Em parte, concordo. O que não quer dizer que o Tiago esteja certo. Passo a explicar.

O meu caro co-bloguista parte do princípio (errado) de que a minha descrença face ao referendo é simultaneamente uma grande devoção à «política feito pelos políticos» (uma assumpção ofensiva para a minha pessoa e também para mim) e um certo desprezo pela voz popular. Tirando tudo o resto, esta última está correcta.

É verdade. Desconfio da «voz popular», que para mim é uma espécie de «Vontade Geral» rousseauniana. E, ainda para mais, desconfio dos referendos. Não é falta de vontade de participar na vida política nem de deixar que outros o façam. É apenas uma atitude prática: se os referendos fizerem tanto sentido e tiverem tanta utilidade como as comissões de inquérito parlamentares, então continuo a achar que não se deve deitar dinheiro à rua fazendo programas políticos atrás de consultas populares.

E a razão é simples, Tiago. É que, sendo eu um grande fã da «sociedade civil» à americana, acabo por ver para além do que está à vista desarmada em relação aos referendos: não são vinculativos e tendem a simbolizar os «assuntos mais importantes», o que é perfeitamente imbecil. Por esta lógica, teríamos um referendo sobre os impostos retroactivos, um sobre a integração europeia (lembram-se da importância que teve o «Não» no referendo ao Tratado Europeu?), outro sobre o TGV, e por aí fora.

Não. A pressão «popular» deve ser feita directamente sobre o Parlamento. E sublinho directa. Porque se, pouco a pouco, os assuntos mediáticos forem desviados do Parlamento e da discussão pública para serem votados, à margem e sem importância legal, em direcção a um simples «Sim» ou «Não», então desautoriza-se, cada vez mais, os órgãos dos quais nos dizemos tão grandes fãs. A solução, a haver, passa por alterar o regime que temos e a retirar algum do poder que os partidos têm sobre os deputados e passá-lo um pouco mais para o eleitor.

Eu já percebi o Tiago. Dizendo-se um céptico da democracia - que, sem dúvida, é imperfeita porque não se pode agradar a gregos e troianos -, ele parece ser agora fã de um género de sistema, ou mesmo de «democracia», mais perto do modelo do Preço Certo, onde o Presidente é o «gordinho» e temos um público ao molho a gritar sugestões, opiniões, devaneios e, quiçá, imprecações para o estúdio, onde os concorrentes é que têm o verdadeiro poder de escolha. Escusado será lembrar ao Tiago que o público, como em quase todos os programas, e mesmo que tenha razão, não manda nada. E que o Tiago, quando quase parece sugerir que toda a gente se deve pronunciar sobre tudo a toda a hora, só me faz lembrar o que John Adams uma vez disse ao escrever a Rousseau: «Reading your work, one has the desire to walk on all fours».

Resta-me dizer: se o Tiago insiste neste modelo de democracia «à Preço Certo», eu tenho para mim que a solução para os problemas pátrios reside em Lenka da Silva, e não no público. Mas isso sou eu que aposto sempre no voto útil.

Bilhetes de Colares

Finalmente, decidi-me por começar a ler os míticos (segundo alguns) Bilhetes de Colares de A.B. Kotter, da autoria não-assumida do José Cutileiro. Devo confessar que há muito tempo que não lia crónicas tão boas. Página a página, Cutileiro só me prova que até um texto sobre nada - e pode efectivamente ser sobre quase nada, já que as personagens são quase todas inventadas -, se for bem escrito, pode ser genial. Simpatizava com o articulista Cutileiro, respeitava o ensaísta Cutileiro, agora rendo-me ao escritor Cutileiro. Volto a dizer, sem pejo: há muito tempo que não lia crónicas tão boas.

A partir de hoje, vou deixando aqui uma pérola por dia, dos Bilhetes de Colares. Usufruam:

«Sou membro do Travellers e não sou membro do Turf ou do Jockey. Do Grémio também não, mas o Grémio não conta porque não é um clube. A função de um clube é excluir pessoas e ao Grémio pertence toda a gente: é uma parte do Chiado a que puseram tecto. Estive uma vez quase a entrar para o círculo Eça de Queiroz. O falecido Dr. Monteiro Grilo tinha prometido propor-me. Quando eu lhe citei, agradado, um amigo alentejano que dizia que o Eça era um janota do Porto, a proposta nunca mais veio.»

09/06/10

Pessimismo Vs. Optimismo

Em 1888, sobre as qualidades de ser pessimista (consequência natural dos tempos em que se vive), Oliveira Martins dizia isto, escrevendo n'O Repórter:

«A uns solta-se-lhes a língua em imprecações, a outros caem-lhes os braços de desalento; a uns franze-se-lhes a boca em sarcasmos, a outros piscam-se-lhes os olhos de gaiatice. Todos se arrepelam, se aborrecem, ou se divertem: só os imbecis se encontram serenamente bem, sossegadamente felizes, seguros na estabilidade do mundo em que existem, satisfeitos com a atmosfera insonsamente miasmática em que respiram.»

Uma visão optimista. Num cinema aqui ao lado

Descobri hoje que o João é um optimista. Pobre João. Triste João. E haverá coisa pior de se descobrir numa pessoa?

Acerca disto, diz o João, aqui, que a «democracia parlamentar» está em «risco» (puro exagero) e que os referendos só servem para divorciar o «povo» da «política» (pura patetice).

É claro que o João parte de um princípio de fé obscuro de que a política está, e vive, imóvel num Parlamento, qual Olimpo dos deuses patéticos. Não está. E não está porque é preciso perceber que a Política é um todo social orgânico, e que é, por isso, muitas vezes contraditória em si mesma. Porque nem todos os elementos de uma sociedade desejam o mesmo para si e para a sua comunidade. Pensar o contrário é não pensar de todo.

Ora, o que o João parece não entender é que a existência necessária de um Parlamento é, já por si, um factor de divórcio entre o «povo» e a dita «política». Razão simples: o Parlamento estabelece uma fronteira entre os indivíduos que, supostamente, fazem a verdadeira política, e os outros que, de quatro em quatro anos são chamados para aplaudir os verdadeiros actores da tragédia. Pior: o Parlamento tem tendência a fomentar essa ideia. Para supostamente se dignificar.

Isto é um erro. E é um erro porque se ignora que, sem um «povo» activo politicamente, não é possível erigir um Parlamento enobrecido. A linha ténue que une estas duas instâncias é, ainda assim, uma linha poderosa. Se uma é fraca, a outra mais fraca fica. Pelo menos numa democracia.

Daí, talvez, a importância da existência da figura de um Presidente (ou de um Rei, para todos os efeitos) que possa, através da sua existência específica, fora do arco partidário, promover essa ligação entre a sociedade e os políticos, duas realidades que tendem, naturalmente, ao divórcio. E daí a exigência de um Presidente que possua uma visão acerca do mundo e execute as suas prerrogativas sustentadas nessa mesma visão. Não o fazer, implica aniquilar-se. Ou no «povo» ou no Parlamento. Mas aniquilar-se ainda assim.

Óbvio que, como em tudo na vida, não é possível agradar a todos. Por isso é preferível que as nossas acções nos agradem a nós próprios. Em consciência. Não o fazer é bater fundo. E é perder tudo.

Assim, as questões que o João levanta fazem pouco sentido. Um Presidente não deve servir para equilibrar o «barco», ou, muito menos, para ser disto ou daquilo. Numa palavra, o Presidente (como qualquer bom governante, aliás) é eleito para apresentar ao país e aos seus cidadãos o caminho da sua consciência. Que não é melhor ou pior que a de outros. É a dele. E basta. Ou deveria bastar.

Ou será que é possível dizer, honestamente, que nada divide, em termos de «visão do mundo», Cavaco Silva e Manuel Alegre? – O outro, claro, não conta.

08/06/10

Isto está bonito...

E eu a julgar que ainda levávamos um ou outro jogador que pudesse fazer a diferença...


As esperanças (se é que ainda alguém as tinha) acabam cedo. Dependendo do matarruano Cristiano Ronaldo, estamos perdidos.

07/06/10

Num café de Portugal

Numa mesa de café a dois metros de distância, alguém diz: «Olha... agora o Cavaco aprovou os paneleiros». Achei que era uma frase muito fofa.

O Presidente e o Parlamento: para que servem?



A propósito deste meu post, o Tiago acusa-me de ser um histérico. Que exagero, Tiago. Que exagero.

Não querendo obrigar ninguém a classificar-me medicamente, devo, no entanto, corrigir a imprecisão do meu caro Tiago: tecnicamente, não sou um histérico, mas sim um neurótico (vide DSM-IV). Ou, no limite, um depressivo arreliado com tudo o que o rodeia, que estará para um depressivo como uma segunda nacionalidade. Sendo assim, nada é para mim histericamente o fim do mundo. Já no que toca a ficar com umas comichões estranhas na barriga com a parvoíce pública de alguns, isso já é outra história. Esclarecido isto, passo ao assunto propriamente dito.

Diz-se agora por aí que Cavaco é eleito segundo as suas opiniões, segundo uma certa «visão do mundo». Um disparate pegado. Por várias razões. Primeiro, das opiniões de Cavaco só sei que gosta de bolo-rei e não gosta de José Saramago. E duvido que alguém - salvo, talvez, quem trabalhe intimamente com ele há vários anos - saiba muito mais. O resto é uma vasta e inóspita paisagem.

Segundo, Cavaco foi e será eleito não por um Portugal romântico e idealista, mas por exclusão de partes: os melhores socialistas (ainda os haverá, acredito) estão espalhados por Bruxelas ou por cargos simbólicos aqui e ali, sem grande vontade de entrar para o pântano mesmo à hora da crise social rebentar; à direita de Cavaco Silva, um deserto a perder de vista e sem gente com qualidade ou percurso para vencer umas eleições presidenciais; pelo menos na imagem, é um dos mais idóneos políticos activos do tempo do relativo desenvolvimento do cavaquismo; e, mais importante de tudo, é uma figura mais consensual do que se pensa.

Terceiro e último, Cavaco Silva foi eleito para a Presidência porque é visto como «moderador». Não se escolheu um «Presidente de direita», mas sim uma figura que, provavelmente, seria tão cooperante com um governo PSD como o é com um PS. Nem mais, nem menos.

Pois esta última questão alerta-nos para uma discussão importante numa fase em que a democracia parlamentar - e nisto acredito profundamente - está em risco, senão de extinção, pelo menos de uma séria remodelação. Qual é o papel de um Presidente da República num regime semi-presidencialista? Deve ser um poder moderador ou equilibrar o «barco» para o lado contrário do Governo? É eleito para ser de «direita» e «esquerda» ou para permitir que as maiorias relativas ou absolutas governem? É importante pensar nisto.

Ressalvo, no entanto, dois aspectos em relação à escolha de Cavaco Silva. Em primeiro lugar, a sua aparição bastante patética e redutora na televisão, justificando-se. Quando se é Presidente, as pessoas esperam que ele faça escolhas, e foi isso que ele fez. Se ele vai justificar cada decisão culpando factos alheios, mais vale acabar-se com o cargo de Presidente moderador e entrar num sistema de governo americano.

Em segundo lugar, a petição. Uma petição com 90 mil assinaturas, como o Tiago referiu, não deve ser «vergonhosamente deitada no caixote do lixo pelo Parlamento». Cada vez mais, a solução para salvar o Parlamento passa por aproximá-lo das pessoas, e não o contrário, correndo o risco de, através da menorização das questões culturais e de valores, destruir a autoridade do Parlamento para lidar com as questões mais estritamente políticas.

Agora, uma coisa é certa. Essa maior discussão, essa mais paciente argumentação, deve ser feita no Parlamento, com representantes teoricamente eleitos para representar os eleitores. Senão, ao precisarmos de um referendo para toda e qualquer mudança de legislação, está feita a travessia definitiva para o divórcio, não entre duas pessoas do mesmo sexo, mas entre povo e política.

06/06/10

Um mal menor

Ao que parece anda por aí muita boa gente de pêlo eriçado (e por aqui também) com as palavras do cardeal-patriarca de Lisboa acerca da promulgação da lei do casamento homossexual por parte de Cavaco Silva.

D. José Policarpo foi algo infeliz em algumas das suas palavras? Concedo. Mas em duas ou três, não mais. Por isso, a histeria instalada sobre o facto surpreende.

Aliás, a revista SÁBADO, que na verdade até costuma ter mais juízo, no seu editorial de 2 de Junho, vai ao ponto de falar de uma «estratégia política» concertada da hierarquia católica, simbolizada por D. José Policarpo, e de «alguns católicos» para tomar o poder em Portugal. Não vale a pena comentar a absurdidade da ideia. Para mais, Pedro Santana Lopes, outro putativo bom católico e «soldado fiel» (?), nem sequer serve para balançar a equação. Se este está insatisfeito com Cavaco Silva, é certo e sabido que tal se deve apenas a um pueril e antigo sentimento de desforra. Isso, e a sua constante e patética necessidade de mostrar que, afinal, ainda está vivo e anda por aí. Conta pouco. Conta nada.

O que conta relembrar é que Cavaco Silva sempre discordou, tal como estava, da lei do casamento homossexual. O que o cardeal-patriarca pedira fora apenas que este fizesse por demonstrasse essa sua posição pessoal, devolvendo deste modo o diploma ao Parlamento. Na prática seria inútil? Na prática quase tudo é inútil. Restam as convicções, as quais, se por um lado não moldam o mundo, ajudam a defini-lo.

Cavaco Silva não o entendeu assim e aprovou o diploma em frente às câmaras de televisão. Tudo para, supostamente, não afastar as atenções dos agentes políticos dos problemas reais das pessoas e não acentuar as fracturas na sociedade. Está à vista o grande sucesso dessa perspectiva.

Claro que o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é um assunto pacífico. Nunca foi. Provavelmente nunca será. Razão simples: o assunto tem implicações importantes na definição de uma sociedade e de uma cultura. Por isso a sociedade divide-se. E divide-se naturalmente. Resta dizer que tentar varrer divisões e discussões para debaixo do tapete nunca foi boa política. E será preciso relembrar que o pedido de referendo ao casamento homossexual, que chegou a reunir mais de 90 mil assinaturas, foi vergonhosamente deitado no caixote do lixo pelo Parlamento?

É, pois, natural que uma grande maioria dos «católicos» portugueses esperasse mais de Cavaco. Erro deles, claro. Como diz e bem o João, Cavaco Silva é um político tout court que opera mediante as circunstâncias e de um conjunto putativo de interesses superiores da pátria. Que, devido a isso, nas próximas eleições, muita gente vá votar em Cavaco Silva como um «mal menor» não me deixa dúvidas. E, obviamente, ao cardeal-patriarca D. José Policarpo também não.

04/06/10

Uma história americana


Vi The Blind Side (na tradução portuguesa, Um Sonho Possível). Devo dizer que não esperava muito. Contava passar um pouco de tempo morto, entretendo-me minimamente com um filme que deu um Óscar a Sandra Bullock, a grande razão (compreensivelmente) para eu gastar os meus olhos cansados num filme que se adivinhava mau. Falhei redondamente.

The Blind Side é um «filme de sábado à tarde», mas daqueles com qualidade. Num género aborrecido - a típica história americana de sucesso ao fim de um percurso de vida muito difícil -, esta história verdadeira de Michael Oher, um prodígio do futebol americano, resulta numa bela surpresa. Entretém, comove e cumpre muito bem a sua função simbólica (um «yes, we can» desportivo). Para além disso, impressiona pela demonstração da capacidade física de Oher, uma força bruta da Natureza que nasceu de um lar destroçado no meio de um bairro ainda menos recomendável. Chegou a viver na rua, sem sítio para onde ir, até ser recebido e apoiado pelos Tuohy.

Sandra Bullock, no papel de Leigh Ann Tuohy - amiga, tutora legal e, na prática, «mãe» inesperada de Oher -, mostra bem porque ganhou o Óscar. Num papel que tinha tudo para ser histérico e exagerado, Bullock contém-se e convence humildemente num papel de mulher americana desembaraçada mas sentimental. Algo que agrada à Academia, como se sabe (ver Reese Whiterspoon/June Cash, Julia Roberts/Erin Brockovich, e outras).

Não esperava a surpresa. Mesmo para quem não tolera muito bem o género de filme, é um belo naco de entretenimento. Bastante bom.

A mancha negra da era Obama

No New York Times, Maureen Dowd explica porque é que a crise do derrame de petróleo no Golfo do México está a transformar Barack Obama num Presidente fraco e apático. Vale a pena ler, acima de tudo pela ironia da prosa. Deixo algumas amostras:

«It’s not a good narrative arc: The man who walked on water is now ensnared by a crisis under water.

One little hole a mile down on the ocean floor, so deep it seems like hell spewing up its sulfurous smoke, has turned the thrilling saga of “The One” into the gurgling horror of “The Abyss.” (Thank goodness James Cameron, the director of “The Abyss,” came to Washington Tuesday to help the administration figure out how to cap the BP well. What’s next? Sending down the Transformers and Megan Fox?)

With as much as 34 million gallons of oil inking the Gulf of Mexico, “Yes we can” has been downgraded to “Will we ever?”(...)

Obama wanted to be a transformative president and now the presidency is transforming him.

Instead of buoyant, he seems put upon. Instead of the fairy dust of hopefulness, there’s the bitter draught of helplessness. (...)»

Misantropia é...

... pôr-me a ler de madrugada, à varanda, sem sono nenhum. Tudo isto antes de acabar um romance, respirar fundo, olhar para as ruas escuras e vazias e pensar: «Raios me partam se eu não podia viver sozinho no mundo».

A questão pessoal de Kenzaburo Oe


Kenzaburo Oe (n. 1935) é um escritor japonês que, aparentemente, recebeu o Nobel da Literatura em 1994. O segundo japonês a conseguir o feito, diz na contracapa do livro. Na minha vasta ignorância, desconhecia o facto. Aliás, na minha vasta ignorância, faltava igualmente o conhecimento da obra de Kenzaburo Oe. Curioso, lá me pus a ler Uma Questão Pessoal - publicado em 1964 -, um dos primeiros livros do homem. Ao acabar o livro, percebi porque não o conhecia. O livro é bastante fraco.

Uma Questão Pessoal, para quem conhece o imaginário privado dos japoneses, é inevitavelmente um livro sobre disfunções relacionais. Sobre a fuga. Sobre o medo das responsabilidades. E, mais japonês ainda, como não podia deixar de ser, sobre sexo. Sexo como escape, sexo como cura, sexo como ligação sincera entre homem e mulher.

O protagonista, Bird - alcunha que lhe deram deste novo -, é um homem nos seus vinte e muitos anos (mais ou menos como o próprio Oe na altura em que escreveu a obra) cuja mulher dá a luz um supostamente esperado bebé que se revela, já fora do ventre materno, um verdadeiro «monstro»: tem uma hérnia cerebral que lhe deforma o crânio ao ponto de parecer «ter duas cabeças». O próprio Bird diz que ele «não parece humano». E é assim que começa Uma Questão Pessoal, com um Bird perdido pelas ruas, bebendo, procurando guarida na casa de uma antiga namorada, competindo com jovens de gangs em máquinas de medir forças, envolvendo-se até em brigas. Regressão, regressão, regressão. Bird foge das responsabilidades.

O caminho que Bird fará é esse mesmo: o da fuga. É que, mais do que «não parecer humano» fisicamente, Bird lutará para reconhecer o bebé, nos primeiros dias de vida, como um humano em si mesmo. Como seu filho. Como sangue do seu sangue. Como alguém com direito à vida. Com direito a uma vida «normal», como várias vezes se interrogará ao longo do livro.

«O sonho com que Bird acordou era duro, o oposto do inocente sonho que o acompanhara enquanto se afundava no sono, uma coisa armada com rebarbas que inspirava angústia. O sono para Bird era um funil no qual entrava pela entrada larga e fácil e do qual tinha de sair pela extremidade estreita. Insuflando-se como um dirigível, o seu corpo atravessava lentamente a escuridão do espaço infinito. Fora citado pelo tribunal do outro lado da escuridão, e estava a pensar numa forma de os cegar em relação à sua responsabilidade pela morte do bebé. Em última análise, sabia que não seria capaz de ludibriar os membros do júri, mas sentia ao mesmo tempo que gostaria de apresentar um apelo. Foi aquela gente do hospital a culpada! Não haveria nada que ele pudesse fazer para escapar ao castigo? Mas o seu sofrimento só se vai tornando mais ignóbil à medida que ele continua a vogar, um patético zepelim.»

Os pesadelos de Bird, por assim dizer, são aquilo que faz o livro valer a pena. A interrogação. A deriva. A perdição, porque não? É que o resto, os metros e metros de linhas, o latim gasto (ou, neste caso, o japonês gasto), por várias vezes me fizeram sentir que estava a ler algo que não vale assim tanto a pena.

Não é um livro que valha muito por si mesmo a não ser se for pela comparação que se pode fazer entre o protagonista e o escritor por detrás do livro. É que Bird, no fundo, é o próprio Kenzaburo Oe, que no ano anterior à publicação do livro deu as boas-vindas ao seu recém-nascido filho com uma deficiência mental. E, provavelmente - ou de certeza absoluta, já que é assumido pelo autor -, as preocupações e fugas de Bird são as do então jovem Kenzaburo.

A identificação crua entre escritor e protagonista é muito gira, sim senhor. E há por aí quem goste muito da ideia de ler um livro de ficção e no fim sentir que a ficção afinal não era ficção. Mas, quando um livro é fraquito... será que isso interessa assim tanto?

03/06/10

Um país falido

E um dia toda a gente acordou. Aparentemente para descobrir que o Estado esbanja dinheiro como se não houvesse amanhã. Não sei a quem é que isto espanta. A história não é nova. De facto, esta história nunca foi nova.

Portugal sempre se habituou a gastar o que não tinha e a ambicionar aquilo para o qual não tinha dinheiro. O TGV e o novo aeroporto de Lisboa são apenas os últimos e mais dramáticos exemplos. Na verdade, para o Estado português, e para os portugueses em geral, o amanhã nunca passou de uma ideia mítica sem grande consistência. O presente sempre foi tudo. O amanhã algo para cuja existência era necessária prova.

Felizmente isso acabou. O combate ao desperdício começa hoje. Aliás, nos ministérios, a água para as visitas já é do cano, as lâmpadas são económicas e o papel reciclado uma prática corrente, entre outras medidas de austeridade que não deixam ninguém indiferente. A patetice de tudo isto devia ser óbvia. Infelizmente não é.

Na oposição, até o PSD entrou na brincadeira por intermédio do seu presidente. Que propõem a mente brilhante e salvítica de Passos Coelho? Nada mais nada menos que uma redução de 5% nos salários dos políticos, gestores públicos e presidentes das várias entidades reguladores, como «medida simbólica» da iminente salvação da pátria – sendo, aqui, «simbólica» a palavra-chave. Sócrates, por entre o aumento dos impostos, percebeu que a medida não lhe aquecia nem arrefecia. Concordou. Afinal era necessário dar um gelado ao menino.

Tudo isto, no entanto, não faz esquecer o ponto principal. E o ponto principal é o de que a grande fatia das despesas do Estado prendem-se com o pagamento do pessoal e das prestações sociais. Vencimentos, apoios, subsídios, reformas e juros. Contas por alto, a coisa corresponde a cerca de 90% das despesas anuais do Estado. O resto, como diz, e bem, Miguel Beleza, «são alfinetes». O que equivale a dizer que não reduzir estas despesas é, pura e simplesmente, não reduzir a despesa.

Por isso mesmo a fé não é grande. Medina Carreira, aliás, já está por tudo e defende mesmo a vinda do FMI para pôr ordem na casa. A medida, de facto, é dramática, e provavelmente necessária. No entanto, suspeito que convencer o FMI a vir cá seja uma outra tarefa complicada. Fartos de países falidos devem estar eles.

02/06/10

80 anos


Parabéns, Clint.

(nascido a 31 de Maio de 1930)

Os suspeitos do costume


Ainda por aí muita gente com os pelos das costas arrepiados porque os israelitas «assassinaram barbaramente» dez activistas e outras frases feitas do género. E claro que dizem isto porque vivem confortavelmente na Europa, de rabo no sofá, torcendo de forma humanista pelos «coitadinhos» dos palestinianos. Mas, antes de tomarem posição pelos indefesos, há um conjunto de coisas que se devem ter em conta. Vejamos:

Perigos para Israel - Israel é um país que está sob constante bombardeamento, quer seja com rockets vindos sabe-se lá de onde, quer seja com bombas colocadas aleatoriamente em mercados bastante concorridos, quer seja com gente que se explode em autocarros.

Soldados imperfeitos - Israel pode ter a reputação de um treino altamente especializado e exigente, mas tem um serviço militar que funciona quase como serviço cívico. Os soldados não são homens insensíveis internados numa máquina de fazer soldados, mas sim cidadãos que vão rodando nas forças armadas ao mesmo tempo que recebem notícias de pais, irmãos, primos, filhos e amigos mortos em ataques bombistas e intifadas. Em que estado iriam vocês para confrontos destes? O ódio envolvido num encontro entre soldados e manifestantes, activistas ou civis agressivos (lembrem-se que eles atacaram os soldados, como pode ser visto num vídeo) é, provavelmente, inimaginável para um Europeu Ocidental.

Duas verdades - Por fim, há sempre duas verdades envolvidas nestes casos. Se o Governo de Israel podia ter evitado a abordagem dos barcos daquela forma? Podia. Mas eu sei lá quais as directivas para casos deste género. E, mais importante que tudo, eu sei lá todas as informações e suspeitas envolvidas aqui. Isto só me lembra um caso antigo, passado em 1770, nos Estados Unidos: o «Massacre de Boston». Nesse caso, tal como aqui, os «maus» provavelmente não fizeram mais do que o seu dever. E, arrisco até, com a atenuante da provocação que foi agredir os soldados ingleses em 1770 e que é ter navios estrangeiros entrando por águas territoriais israelitas em 2010.

Se querem culpar alguém, culpem todos. Culpem a situação. E não os «suspeitos do costume». Porque, se é verdade que o facto de Israel ser um Estado que tem mais poder e organização que a Autoridade Palestiniana, isso não faz deles os «maus da fita». É que se a fama fosse tudo, os turcos bem poderiam estar calados.

Clint Eastwood e a coragem de ser meloso


Finalmente, e quase por condescendência ao meu amigo Clint Eastwood, lá vi Invictus, o último filme do mestre. Nada de novo a Oeste. Ou, neste caso, a Sul. Não é tão mau como poderia ser, mas também não é melhor do que eu esperava.

A verdade é esta: é um filme sobre Nelson Mandela. Goste-se ou não do homem, Mandela é uma figura quase consensual. A não ser que sejamos Afrikaners ressabiados, há sempre uma reserva de empatia para com o histórico (direi mítico?) chefe de Estado sul-africano. E com outra figura consensual de Hollywood como Morgan Freeman, o resultado é até demasiado previsível. Um protagonista magnetizante e demasiadamente bom, quase como se viesse de um qualquer plano celeste para a Terra. E isso, à partida, não é bom para um filme.

Mas, como eu dizia, é um biopic, e os biopics nunca foram o meu género favorito. Salvo as limitações decorrentes do próprio género, há outros elementos que merecem atenção.

O tempo do filme passa-se sensivelmente entre 1994 e 1995, com uns flashbacks para o dia em que Mandela foi libertado (1990) ou, por exemplo, para o tempo em que estava preso e lia um poema de William Ernest Henley, que dá título ao filme, para se lembrar de resistir, de sobreviver. Mas a acção centra-se sobretudo nos esforços de Mandela para unir a nação, para construir a «nova» África do Sul sobre a anterior, sem destruir as bases e os elementos que deram identidade ao regime do Apartheid, sob pena de alienar os brancos, a minoria que ainda detém o poder de deixar ou não que o novo regime tenha futuro. Um desses elementos que Mandela tentará manter de pé é, precisamente, a selecção de rugby.
De forma simplista, tal como é subrepticiamente sugerido em Invictus, na África do Sul o rugby é o desporto dos brancos e o futebol é o desporto dos pretos. Ou, como diz algures um segurança branco da equipa de guarda-costas do presidente: «o rugby é um desporto de hooligans jogado por cavalheiros, enquanto que o futebol é um desporto de cavalheiros jogado por hooligans». E a fractura no seio do país continua, mesmo depois do fim do Apartheid. Desta vez no desporto.

Para isso, Mandela (Morgan Freeman) vai estreitar os laços com o capitão da selecção François Pienaar (Matt Damon), para ajudar a selecção não só a ganhar a Taça do Mundo de 1995 mas a criar um consenso, uma união, uma identidade nacional em redor de uma equipa que há pouco tempo tinha significado a dominação branca sobre os negros no país. Embora tenha resultados surpreendentes na acção em si, a acção de Mandela evolui, de forma pachorrenta, para um «feel good movie» que não vicia nem deixa uma trama qualquer no ar, se excluirmos a mera representação de Morgan Freeman.

Há Clint Eastwood em Invictus, sim. Mas pouco. A relação complicada de Mandela com a mulher e as filhas («Ele não é um santo», diz um dos seguranças mais fiéis), ao som do característico piano dos filmes de Clint, e quase sempre som música escrita e interpretado pelo próprio realizador, dá espaço para as maiores «cenas Eastwood» deste filme. As figuras que emergem das sombras, sobretudo nos túneis de acesso ao estádio (sempre quis usar esta expressão numa crítica a um filme). Os jogos de luz e sombra no gabinete do presidente Mandela. O amor e dedicação a uma figura que, nitidamente, inspira simpatia a Clint Eastwood.

Isto é Eastwood, certamente. Mas um Eastwood menos clássico e mais altruísta. Um filme simpático mas que pode servir como comprimido para dormir para quem anda com insónias. Foi uma prenda, uma homenagem a Nelson Mandela, à África do Sul e até ao rugby, mas ficou a faltar o Clint Eastwood que nos habituou a vê-lo como o último dos grandes realizadores «clássicos» e classicistas de Hollywood. Fico à espera de mais. E, já agora, de bastante melhor.