Ao que parece, num programa de rádio, D. José Policarpo disse o que toda a gente sabe que ele acha: que é contra o casamento gay e que Cavaco Silva devia ter vetado a lei que permitirá, num futuro próximo, esse mesmo tipo de casamentos. Acho muito bem. Acho muito bem que o Cardeal Patriarca de Lisboa pense pela sua cabeça e não ao sabor das marés do tempo. Acho muito bem que ele diga o que pensa e que o deixe claro. E até acho bem que ache o que acha sobre o casamento gay, porque só é lógico com as posições pessoais do próximo. Mas a lógica e a sensatez parecem estar, pouco a pouco, a abandonar o barco de D. José Policarpo.
Devo confessar: à falta de identificação espiritual, tenho um grande respeito intelectual pelos bispos e padres católicos em Portugal. Se permitirem o rigor, até acho que são eles as pessoas mais cultas do país em variados assuntos e sem qualquer vaidade ou «punhetagem intelectual» (para roubar uma expressão de um amigo), e só por isso merecem a minha admiração. Mas também confesso outra opinião: ao contrário de Manuel Clemente (Porto), o Cardeal Patriarca de Lisboa já não parece andar com muito tino. É que, se uma coisa é expressar uma opinião política, outra coisa é inventar hipóteses mirabolantes sobre futuras eleições presidenciais, e sobretudo assumindo uma posição de omnisciência das intenções dos católicos portugueses.
Diz D. José Policarpo que Cavaco perdeu uma boa oportunidade para «garantir a reeleição». Que é como quem diz que perdeu uma boa oportunidade para mostrar o seu catolicismo. Que é como quem diz que perdeu uma boa oportunidade para vetar uma lei de uma certa inspiração de «esquerda progressista». Com o resultado conhecido (Cavaco promulga a dita lei), brota então do chão um inominável representante de uma anónima maioria silenciosa que anda muito arreliada porque afinal os maricas já vão casar. Dizem-se católicos que afinal agora querem um presidente que seja mesmo de uma «direita católica».
Para dizer a verdade, eu não sei muito bem quais dos três foi mais estúpido: se D. José Policarpo com uma quase chantagem subentendida em relação às eleições; se esta «maioria silenciosa» que quer na Presidência uma raça que já não existe; ou se mesmo o próprio Cavaco, ao vir à televisão justificar uma decisão que, normalmente, lhe cabe todos os dias.
Dirão que exagero. Não tanto, não tanto. Só exaspero. Exaspero com a visão de um Portugal que sopra nas cornetas africanas enquanto paga aumentos de combustível na mesma Galp que lhas fornece, que aceita tudo o que vem de um Governo e de uma oposição passiva que lhes digam que é a única solução, que votem nos políticos bonitos e se recusem a votar nos feios, e que, por último, entra em pânico porque afinal alguém já vai poder fazer o mesmo que eles e ter acesso a certos direitos conjugais que só a eles importava.
Cavaco nunca foi «de direita», mas sim um candidato de um Partido Direita para dominar o «centro» do espectro partidário. Nunca foi um «político católico», mas sim um algarvio que por acaso é católico e que sempre teve posições relativamente conservadoras na sua vida política - e que até já resultou em bronca, para quem se lembra do episódio com José Saramago. E, mais importante de tudo, nunca foi um Presidente da República «de direita» nem «da direita», mas sim um candidato apoiado pelo PSD que tem governado para essa coisa amorfa e virtual que é a entidade «todos os portugueses e portuguesas», sendo até bastante imprevisível nos seus apoios e críticas públicas a não ser que leiamos as suas posições conforme as circunstâncias. Em resumo, sempre foi um político tout court, e não um idealista.
Por fim, quer se queria quer não, ao não vetar esta lei - que seria inevitável e não afecta quem já está casado nem quem é inteligente e se mantém solteiro - Cavaco evitou trazer à tona um debate que, com toda a sua importância e valor, só beneficiaria um Governo que quisesse deixar para segundo plano a actividade legislativa mais impopular e que mais afectasse a vida das pessoas. Ao promulgar a lei, Cavaco optou por beneficiar o maior número de portugueses possível e afectar o menor número (ai Jesus, os utilitaristas!) e, em última instância, acabou a beneficiar mais a sua candidatura do que a prejudicá-la.
Querem uma aposta?
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