Suponho que viver no meio da natureza seja sonho para muita gente. E como não? Pense-se apenas na solidão. No sossego. Na serenidade. Na vista sobre um horizonte infindável, banhado pela perfeição que só um pôr-do-sol pode oferecer. Imagine-se agora apreciar tudo isto na companhia encantadora de Scarlett Johansson. (Suspiro. Duplo Suspiro.) Nem o paraíso poderia ser tão perfeito.
A isto se chama ter uma ‘vida simples’. Viver da terra e para a terra. Nos entretantos, ler prosa selecta. Muito selecta. Pensar. Escrever. A Scarlett e um copo de vinho. Pensar mais um pouco. Ler idem. Receber, ocasionalmente, um ou outro amigo mais próximo. Uma pessoa sonha com isto e sente-se um verdadeiro Henry David Thoreau. Na verdade, uma pessoa sonha com isto e deseja realmente ser Thoureau.
Infelizmente, e como Thoureau bem sabia, nem nessa ideia simples estamos completamente livres de poderes transcendentes que, fatalmente, nos relembram a dura e miserável realidade de que este é um luxo a que já ninguém tem direito. Que o diga quem, até há bem pouco tempo, tinha habitação no Parque Natural da Arrábida, junto à Aldeia da Piedade, perto de Azeitão, e a viu ser demolida coercivamente pelo ICNB (Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade). Aparentemente, e desta vez, foram três casas. Uma, a de Ana Merelo. A outra, a de Mário Pereira Alves. Pessoas a quem, e como se não bastasse, será exigido o pagamento das operações, assim como, suponho, uma nota escrita de agradecimento pelo distinto trabalho executado.
Mas eu falei de três demolições? Erro meu. A mais dramática, a do agricultor Florentino Duarte e família, foi poupada por ordem do tribunal. A filha que com ele reside está grávida de oito meses. O tribunal, aqui, foi caridoso, numa dádiva pouco habitual. Não obstante ser esta uma dádiva com data de expiração. Mal a criança nasça a demolição avança. O homem, sem meio de sustento senão a sua quinta, será mandado para debaixo da ponte com um novo neto nos braços. É como se diz: vida nova, casa nova.
O ICNB, pelo seu Presidente Tito Rosa, a cara da vergonha, não se condói e explica que as casas foram construídas ilegalmente, há mais de 20 anos, numa zona protegida. Repito o pormenor: construídas há mais de 20 anos. O sr. Rosa explica que é a lei. E que a lei é para todos. Ainda que venha que com uma vida de atraso. Porque, de facto, de uma vida de atraso se trata. O Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, o qual regula as construções no espaço protegido, só foi aprovado em 2005. Minudências, claro. Antes da implementação do mesmo, já existiriam «algumas regras de construção» (sic), as quais, suponho, foram estipuladas a olho e ao sabor do vento. Inacreditável como, na altura, ninguém estava esclarecido.
Durante todo este tempo (20 anos, minha gente, 20 anos), Florentino Duarte, na sua inocência, ali foi gastando as economias a montar uma vida enquanto os poderes públicos não eram visto nem aparecidos. Agora isso de nada vale. O ambiente, claro, está em primeiro lugar. Os vizinhos, incrédulos, leigos em direito ambiental, não compreendem como é possível que meia dúzia de casas sejam demolidas quando, nas suas traseiras, pedreiras esventram pacientemente, faz anos, uma Serra protegida pelo mesmo ICNB. Não duvido que seja uma questão de prioridades. Ou melhor, de facilidade. O ICNB, que nunca serviu nada nem ninguém senão a sua própria idiotice, acha que são estas habitações quem comprometem fatalmente o Parque Natural. E perante isto, claro, o drama humano não passa de uma coisa secundária e sem importância. Obviamente.
Felizmente, há um vislumbre de salvação. Os poderes autárquicos, que, aparentemente, nunca se preocuparam antes com o assunto, acordaram, como é hábito, perante a tragédia iminente e já prometeram intervir no sentido de impedir a demolição da casa do sr. Florentino Duarte. Admito que não tenho grande fé. O ICNB está convicto das suas beneméritas acções na conservação da natureza e da biodiversidade. Aliás, que estas incluam a redução a um monte de escombros um conjunto de habitações que a nada nem a ninguém afectam, destruindo umas quantas vidas pelo caminho, na tentativa de aprimorar uma paisagem límpida sobre uma pedreira, não deixa de ser uma metáfora perfeita para o excelso trabalho que todos os dias o ICNB luta por realizar.
[Edição Impressa, Jornal O SUL, Julho de 2010]
Muito bom. E é uma bela homenagem ao ICNB, que todos os dias luta pela conservação e incentivo à vida animal na Serra. Que, pelos vistos, tem regime de excepção para os seres vivos racionais.
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