«Ninguém sai daqui vivo», dizia Jim Morrison. Mas isto está ainda pior do que eu pensava. Portugal, com a educação no estado em que está, não pode contemplar um futuro muito radiante. Ou, pelo menos, foi essa a visão (que já tinha, num estado de mínima lucidez) com que fiquei depois de acabar de ler o ensaio de Maria do Carmo Vieira, O Ensino do Português.
Maria do Carmo Vieira, que, para além da formação superiora, tem escrito livros, artigos e intervindo na discussão e esforço de uma minoria para clarificar o estado da educação nesta república à beira mar plantada, é, sobretudo... uma professora. Uma professora do ensino secundário que conhece na pele o que é o terror de leccionar neste país. E, por fim, num rasgo de originalidade, uma professora que sabe dar voz à contestação como toda a gente devia fazer: pensando e escrevendo.
O ensaio - um texto muito louvável saído da ainda mais louvável Fundação Francisco Manuel dos Santos (que tem nos «pais», entre outros, António Barreto) - não é meigo para com as salas de aula dos últimos dez anos. Aliás, não é meigo com a educação em Portugal desde quase o 25 de Abril. A autora explica: «Na ânsia de reforma do ensino, após o 25 de Abril, ocorreram transformações demasiado rápidas e pouco pensadas, sugeridas pela vontade de um corte radical com todas as estratégias de aprendizagem que se relacionassem, directa ou indirectamente, com o passado salazarista. Não houve, assim, preocupação em reflectir sobre o que poderia ser mantido, tendo em conta a sua eficácia. Reconhece-se, por exemplo, no 1.º ciclo, anteriormente designado por Ensino Primário, o exagero na memorização de linhas férreas, ou de serras que, por vezes, não se sabia apontar num mapa, ou da longa enumeração de rios e seus afluentes, entre outros aspectos. O certo é que se caiu no extremo oposto, aligeirando-se os conteúdos programáticos no intuito de anular a dificuldade.»
Nem eu o diria melhor. A escola, como tantas coisas em Portugal, começou, a partir de 1974, a remar contra a maré com todas as forças. Ironicamente, só o começou a fazer quando a maré tinha cessado, quando já não havia «fascistas» para combater. Quando a tendência mais tradicionalista na escola, e na ideia de «ordem» na sala de aula - à imagem da sociedade e do seio familiar -, ruiu, os movimentos ditos mais «progressistas» venderam-nos, à força, uma ideia de promoção social através de um ensino suave, que permitisse ao aluno «participar» no processo lectivo. Ou seja, a par dos orçamentos participativos e do policiamento antifascista participativo, chegou - de outro planeta, certamente - uma ideia de que os jovens não tinham só o futuro nas mãos, mas também a escola, o ensino, os professores e - porque não dizê-lo? - os próprios pais. A partir de então, quem se sentava na carteira, eram os professores. Passava o aluno a ter acesso à palmatória. O ensino, agora, era uma diversão.
A par da evolução estrutural do ensino, também outros factores influenciaram bastante esta mudança de atitudes. Transversal a muitos desses factores, e até provavelmente a todos, está esta ideia de psicologia barata que se conseguiu impingir aos «antigos jovens» que se tornaram pais depois do 25 de Abril. Esta ideia de que as crianças têm «traumas de aprendizagem», «traumas das dificuldades» que se lhes apresentam pela frente, e «traumas por serem contrariadas». Como tal, devia-se adoptar, diziam, uma atitude de hands off face às crianças, que assim ficavam livres para crescer em toda a sua força. Sem ralhetes dos pais. Sem avaliação escolar. Sem autoridade. Sem estrutura sólida. Apenas liberdade, e um vasto deserto de valores e modelos.
Tudo isto está errado. Quer do ponto de vista da psicologia (a responsável, vá) - que naturalmente reconhece a centralidade da imposição de limites quer por pais quer por figuras de autoridade como os professores -, quer do ponto de vista da escola. Maria do Carmo Vieira explica no livro: «Ao apresentar a dificuldade como barreira insuperável para a aquisição de qualquer conhecimento e ao ler «trauma» onde reside a expectativa e a vontade de saber, está a querer impor-se aos alunos a facilidade como caminho para a obtenção do êxito escolar, não lhes dando a oportunidade de reflectir e de desenvolver as suas próprias capacidades nem de sentir a alegria que naturalmente se manifesta quando se atinge, com esforço, um determinado objectivo.» A autora, aliás, vai mais longe numa passagem anterior, em que explica o quão pouco se pede aos miúdos em termos de leituras. Invertendo o bico ao prego, explica, com a maior da naturalidade e da razoabilidade, o porquê de se dever exigir mais dos alunos: «(...) se um aluno chegar ao secundário a ler mal, não conseguindo interpretar correctamente um texto, e a escrever de forma incorrecta e inadequada, facilmente se desmotivará pela insegurança e pela vergonha que sente, razões suficientes para abandonar os estudos.» Mais certeira e simples do que isto não poderia ser.
Por vezes aborrecido pelo tom sério que tem e pelo penoso que pode ser ler uma análise de monstrengos como o TLEBS, o ensaio de Maria do Carmo Vieira não peca, pelo menos, por dois aspectos. Em primeiro lugar, é um ensaio lúcido que, embora não diga nada de novo em relação ao estado geral da educação em Portugal, traz luz e racionalidade sobre o mesmo, ou pelo menos sobre a discussão envolvente, permitindo-nos saber que nem todos os professores liceais são camafeus que se passeiam sob faixas sindicais e muita música na Avenida da Liberdade aos dias de semana. Em segundo lugar, leva-nos numa viagem surreal ao «outro lado do espelho», ou seja, ao seguirmos o coelho brando do raciocínio e da experiência de Maria do Carmo Vieira, acabamos a saber que os meninos que vão ter de governar o país daqui a trinta ou quarenta anos andam a aprender na escola, não Eça de Queiroz, não Vergílio Ferreira, mas sim o modo de fazer requerimentos, circulares, relatórios, etc, etc. Nâo, não brinco. São literalmente «textos não-literários», incluindo passar um «atestado médico» a Fernando Pessoa.
Andamos a formar funcionários de secretaria. Acabaram-se os pensadores, os esforçados, os artistas. Agora, saber carimbar uma folha com um despacho parece ser suficiente. Maria do Carmo Vieira, muito competentemente, dá-nos o diagnóstico de ensinar assim os nossos miúdos e tratar assim os nossos professores: «Vivemos, sem dúvida, em matéria de Educação e de Instrução, no reino do Absrudo, deixando-nos manipular e seduzir por facilidades e contínuas ilusões que nos despojam das nossas próprias capacidades». No reino do Absurdo, indeed.