31/07/10

Um monumento à estupidez


Quando Maria de Lurdes Rodrigues estava no Ministério da Educação, várias vezes pensei: «nunca tivemos uma Ministra da Educação tão má e tão pobrezinha de ideias como esta». Erro meu. Optimismo desnecessário. Nunca digas nunca, pensei eu hoje.

Que Isabel Alçada era e é uma figura ao nível intelectual e humano de Fernando Nobre, não tinha grandes dúvidas: desafiam ambos a certeza de que nascemos no planeta Terra. Agora que ela se conseguisse esforçar, antes de metade do seu mandato, por ser pior que Maria de Lurdes Rodrigues, isso ultrapassava as minhas piores expectativas.

Aparentemente, Isabel Alçada quer «acabar com os chumbos» no liceu. E isso, obviamente, faz dela a figura mais triste do nosso governo neste fim-de-semana. Se foi ela que teve a ideia, não sei. Se ela acredita que isto vai melhorar o ensino ou, saiba-se lá, a inteligência pátria, ainda menos saberei. O que se passa dentro daquela cabeça de vento, só Deus (em caso de existir) saberá. O que é certo, e pelo qual eu meto as mãos no fogo, é que Isabel Alçada merece um monumento à estupidez. Mais do que isso, merece ser açoitada publicamente na comunicação social e na blogosfera. Que se abram, pois, as hostilidades.

A coragem de ser pessimista

Oliveira Martins - quem mais? - destila, mais uma vez, neste blog, o seu desdém pelos optimistas. Desta feita, num dos volumes de artigos de Política e História:

 «Pessimismo. Com este labéu se apodam os que, nos tempos descuidados e serenos, ousam analisar, julgar e dizer com clareza os perigos inevitáveis do futuro. Chama-se-lhes gente azeda, de maus fígados, criaturas incómodas que vêm interromper o ciclo da sociedade bem comida e bem bebida.

Um dia, porém, ouve-se o dobre de finados; e foram sempre os pessimistas aqueles que mais corajosa e denodadamente souberam encarar a crise, com a alma segura e a consciência serena.

Os optimistas da véspera, aterrados, apertam a cabeça com as mãos, e perdida a fortuna, perdem o sangue-frio. Os cépticos riem à socapa, cogitando nos meios de medrar com a própria desgraça; e os críticos dizem como na fábula a formiga à cigarra: Cantaste? Pois dança agora!

(...) O que nós todos, pessimistas, quereríamos é que as lições da história servissem para alguma coisa; e que, em vez de declamações fúnebres de desespero, em vez de pataratices de um messianismo fora do tempo, porque já passaram as idades de Babilónia e o espírito do profetismo; em vez de toda essa farragem que não é mais do que um novo sintoma de cachexia senil, puséssemos corajosamente mãos à obra do nosso rejuvenescimento. O pessimismo é a escola da coragem*.»

*O bold é da minha inteira autoria, responsabilidade e bom gosto.

29/07/10

Viver na Natureza (e ter o ICNB como vizinho)


Suponho que viver no meio da natureza seja sonho para muita gente. E como não? Pense-se apenas na solidão. No sossego. Na serenidade. Na vista sobre um horizonte infindável, banhado pela perfeição que só um pôr-do-sol pode oferecer. Imagine-se agora apreciar tudo isto na companhia encantadora de Scarlett Johansson. (Suspiro. Duplo Suspiro.) Nem o paraíso poderia ser tão perfeito.

A isto se chama ter uma ‘vida simples’. Viver da terra e para a terra. Nos entretantos, ler prosa selecta. Muito selecta. Pensar. Escrever. A Scarlett e um copo de vinho. Pensar mais um pouco. Ler idem. Receber, ocasionalmente, um ou outro amigo mais próximo. Uma pessoa sonha com isto e sente-se um verdadeiro Henry David Thoreau. Na verdade, uma pessoa sonha com isto e deseja realmente ser Thoureau.

Infelizmente, e como Thoureau bem sabia, nem nessa ideia simples estamos completamente livres de poderes transcendentes que, fatalmente, nos relembram a dura e miserável realidade de que este é um luxo a que já ninguém tem direito. Que o diga quem, até há bem pouco tempo, tinha habitação no Parque Natural da Arrábida, junto à Aldeia da Piedade, perto de Azeitão, e a viu ser demolida coercivamente pelo ICNB (Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade). Aparentemente, e desta vez, foram três casas. Uma, a de Ana Merelo. A outra, a de Mário Pereira Alves. Pessoas a quem, e como se não bastasse, será exigido o pagamento das operações, assim como, suponho, uma nota escrita de agradecimento pelo distinto trabalho executado.

Mas eu falei de três demolições? Erro meu. A mais dramática, a do agricultor Florentino Duarte e família, foi poupada por ordem do tribunal. A filha que com ele reside está grávida de oito meses. O tribunal, aqui, foi caridoso, numa dádiva pouco habitual. Não obstante ser esta uma dádiva com data de expiração. Mal a criança nasça a demolição avança. O homem, sem meio de sustento senão a sua quinta, será mandado para debaixo da ponte com um novo neto nos braços. É como se diz: vida nova, casa nova.

O ICNB, pelo seu Presidente Tito Rosa, a cara da vergonha, não se condói e explica que as casas foram construídas ilegalmente, há mais de 20 anos, numa zona protegida. Repito o pormenor: construídas há mais de 20 anos. O sr. Rosa explica que é a lei. E que a lei é para todos. Ainda que venha que com uma vida de atraso. Porque, de facto, de uma vida de atraso se trata. O Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, o qual regula as construções no espaço protegido, só foi aprovado em 2005. Minudências, claro. Antes da implementação do mesmo, já existiriam «algumas regras de construção» (sic), as quais, suponho, foram estipuladas a olho e ao sabor do vento. Inacreditável como, na altura, ninguém estava esclarecido.

Durante todo este tempo (20 anos, minha gente, 20 anos), Florentino Duarte, na sua inocência, ali foi gastando as economias a montar uma vida enquanto os poderes públicos não eram visto nem aparecidos. Agora isso de nada vale. O ambiente, claro, está em primeiro lugar. Os vizinhos, incrédulos, leigos em direito ambiental, não compreendem como é possível que meia dúzia de casas sejam demolidas quando, nas suas traseiras, pedreiras esventram pacientemente, faz anos, uma Serra protegida pelo mesmo ICNB. Não duvido que seja uma questão de prioridades. Ou melhor, de facilidade. O ICNB, que nunca serviu nada nem ninguém senão a sua própria idiotice, acha que são estas habitações quem comprometem fatalmente o Parque Natural. E perante isto, claro, o drama humano não passa de uma coisa secundária e sem importância. Obviamente.

Felizmente, há um vislumbre de salvação. Os poderes autárquicos, que, aparentemente, nunca se preocuparam antes com o assunto, acordaram, como é hábito, perante a tragédia iminente e já prometeram intervir no sentido de impedir a demolição da casa do sr. Florentino Duarte. Admito que não tenho grande fé. O ICNB está convicto das suas beneméritas acções na conservação da natureza e da biodiversidade. Aliás, que estas incluam a redução a um monte de escombros um conjunto de habitações que a nada nem a ninguém afectam, destruindo umas quantas vidas pelo caminho, na tentativa de aprimorar uma paisagem límpida sobre uma pedreira, não deixa de ser uma metáfora perfeita para o excelso trabalho que todos os dias o ICNB luta por realizar.

[Edição Impressa, Jornal O SUL, Julho de 2010]

Calor de cozer miolo


Em Setúbal estamos assim. Com o mesmo olhar de assombro e tudo. 

O retomar do trabalho


Depois de um interregno auto-imposto para tratar de assuntos que considerava prementes, o retorno. Momento perfeito para dar conta de gloriosas aventuras. De grandes e memoráveis obras. De feitos extraordinários capazes de suportar a poeira do tempo. No fim, nada. Praticamente não saí de casa. Li pouco. Escrevi menos. Quando eventualmente saí, para um jantar de âmbito social, fomentei previsivelmente uma inimizade ou duas. Pelo meio, cortei o cabelo.

É claro que o plano não era este. O plano, na verdade, nunca fora este. A excisão capilar só se deveu às inesperadas e extremas condições climatéricas sentidas. Em todo o caso, voltei. Não melhor. Não pior. Apenas mais careca.

27/07/10

Da vil e enganadora natureza humana


The Ghost Writer, realizado por Roman Polanski.

Do limbo entre memória e ilusão

 Se eu já não fosse um dos maiores fãs de Martin Scorsese, ficá-lo-ia, certamente, com este filme. Com uma fluidez, uma simplicidade e uma naturalidade só possíveis com um grande realizador que já não precisa de provar nada a ninguém, Shutter Island passa dos livros (Dennis Lehane) para o cinema com um estrondo simpático. Nem grande alarido, nem uma passagem demasiado discreta. Um excelente filme que, tal como o seu criador, nada tem de vaidoso mas que tem muito a dizer, muito a mostrar, e muito a surpreender, até aos créditos finais. A não perder de vista, ainda, Leonardo DiCaprio, que, tal como um grande ilusionista, quando já pensámos que vimos tudo, eis que tira mais um coelho da cartola. E outro. E outro. E outro. A melhor parceria cinematográfica dos últimos dez anos.

O fim do Ensino e o último homem



«Ninguém sai daqui vivo», dizia Jim Morrison. Mas isto está ainda pior do que eu pensava. Portugal, com a educação no estado em que está, não pode contemplar um futuro muito radiante. Ou, pelo menos, foi essa a visão (que já tinha, num estado de mínima lucidez) com que fiquei depois de acabar de ler o ensaio de Maria do Carmo Vieira, O Ensino do Português.

Maria do Carmo Vieira, que, para além da formação superiora, tem escrito livros, artigos e intervindo na discussão e esforço de uma minoria para clarificar o estado da educação nesta república à beira mar plantada, é, sobretudo... uma professora. Uma professora do ensino secundário que conhece na pele o que é o terror de leccionar neste país. E, por fim, num rasgo de originalidade, uma professora que sabe dar voz à contestação como toda a gente devia fazer: pensando e escrevendo.

O ensaio - um texto muito louvável saído da ainda mais louvável Fundação Francisco Manuel dos Santos (que tem nos «pais», entre outros, António Barreto) - não é meigo para com as salas de aula dos últimos dez anos. Aliás, não é meigo com a educação em Portugal desde quase o 25 de Abril. A autora explica: «Na ânsia de reforma do ensino, após o 25 de Abril, ocorreram transformações demasiado rápidas e pouco pensadas, sugeridas pela vontade de um corte radical com todas as estratégias de aprendizagem que se relacionassem, directa ou indirectamente, com o passado salazarista. Não houve, assim, preocupação em reflectir sobre o que poderia ser mantido, tendo em conta a sua eficácia. Reconhece-se, por exemplo, no 1.º ciclo, anteriormente designado por Ensino Primário, o exagero na memorização de linhas férreas, ou de serras que, por vezes, não se sabia apontar num mapa, ou da longa enumeração de rios e seus afluentes, entre outros aspectos. O certo é que se caiu no extremo oposto, aligeirando-se os conteúdos programáticos no intuito de anular a dificuldade.»

Nem eu o diria melhor. A escola, como tantas coisas em Portugal, começou, a partir de 1974, a remar contra a maré com todas as forças. Ironicamente, só o começou a fazer quando a maré tinha cessado, quando já não havia «fascistas» para combater. Quando a tendência mais tradicionalista na escola, e na ideia de «ordem» na sala de aula - à imagem da sociedade e do seio familiar -, ruiu, os movimentos ditos mais «progressistas» venderam-nos, à força, uma ideia de promoção social através de um ensino suave, que permitisse ao aluno «participar» no processo lectivo. Ou seja, a par dos orçamentos participativos e do policiamento antifascista participativo, chegou - de outro planeta, certamente - uma ideia de que os jovens não tinham só o futuro nas mãos, mas também a escola, o ensino, os professores e - porque não dizê-lo? - os próprios pais. A partir de então, quem se sentava na carteira, eram os professores. Passava o aluno a ter acesso à palmatória. O ensino, agora, era uma diversão.

A par da evolução estrutural do ensino, também outros factores influenciaram bastante esta mudança de atitudes. Transversal a muitos desses factores, e até provavelmente a todos, está esta ideia de psicologia barata que se conseguiu impingir aos «antigos jovens» que se tornaram pais depois do 25 de Abril. Esta ideia de que as crianças têm «traumas de aprendizagem», «traumas das dificuldades» que se lhes apresentam pela frente, e «traumas por serem contrariadas». Como tal, devia-se adoptar, diziam, uma atitude de hands off face às crianças, que assim ficavam livres para crescer em toda a sua força. Sem ralhetes dos pais. Sem avaliação escolar. Sem autoridade. Sem estrutura sólida. Apenas liberdade, e um vasto deserto de valores e modelos.

Tudo isto está errado. Quer do ponto de vista da psicologia (a responsável, vá) - que naturalmente reconhece a centralidade da imposição de limites quer por pais quer por figuras de autoridade como os professores -, quer do ponto de vista da escola. Maria do Carmo Vieira explica no livro: «Ao apresentar a dificuldade como barreira insuperável para a aquisição de qualquer conhecimento e ao ler «trauma» onde reside a expectativa e a vontade de saber, está a querer impor-se aos alunos a facilidade como caminho para a obtenção do êxito escolar, não lhes dando a oportunidade de reflectir e de desenvolver as suas próprias capacidades nem de sentir a alegria que naturalmente se manifesta quando se atinge, com esforço, um determinado objectivo.» A autora, aliás, vai mais longe numa passagem anterior, em que explica o quão pouco se pede aos miúdos em termos de leituras. Invertendo o bico ao prego, explica, com a maior da naturalidade e da razoabilidade, o porquê de se dever exigir mais dos alunos: «(...) se um aluno chegar ao secundário a ler mal, não conseguindo interpretar correctamente um texto, e a escrever de forma incorrecta e inadequada, facilmente se desmotivará pela insegurança e pela vergonha que sente, razões suficientes para abandonar os estudos.» Mais certeira e simples do que isto não poderia ser.

Por vezes aborrecido pelo tom sério que tem e pelo penoso que pode ser ler uma análise de monstrengos como o TLEBS, o ensaio de Maria do Carmo Vieira não peca, pelo menos, por dois aspectos. Em primeiro lugar, é um ensaio lúcido que, embora não diga nada de novo em relação ao estado geral da educação em Portugal, traz luz e racionalidade sobre o mesmo, ou pelo menos sobre a discussão envolvente, permitindo-nos saber que nem todos os professores liceais são camafeus que se passeiam sob faixas sindicais e muita música na Avenida da Liberdade aos dias de semana. Em segundo lugar, leva-nos numa viagem surreal ao «outro lado do espelho», ou seja, ao seguirmos o coelho brando do raciocínio e da experiência de Maria do Carmo Vieira, acabamos a saber que os meninos que vão ter de governar o país daqui a trinta ou quarenta anos andam a aprender na escola, não Eça de Queiroz, não Vergílio Ferreira, mas sim o modo de fazer requerimentos, circulares, relatórios, etc, etc. Nâo, não brinco. São literalmente «textos não-literários», incluindo passar um «atestado médico» a Fernando Pessoa.

Andamos a formar funcionários de secretaria. Acabaram-se os pensadores, os esforçados, os artistas. Agora, saber carimbar uma folha com um despacho parece ser suficiente. Maria do Carmo Vieira, muito competentemente, dá-nos o diagnóstico de ensinar assim os nossos miúdos e tratar assim os nossos professores: «Vivemos, sem dúvida, em matéria de Educação e de Instrução, no reino do Absrudo, deixando-nos manipular e seduzir por facilidades e contínuas ilusões que nos despojam das nossas próprias capacidades». No reino do Absurdo, indeed.

24/07/10

Bill


Na última semana fui praticamente um correio entre israelitas e palestinianos. Nos últimos dias, sobretudo, juntei a tensão de estar no meio destes dois grupos ao cansaço de permitir que se encontrem. Acabei estafado, ao ponto de não conseguir quase levantar-me do sofá. Poderia mesmo dizer que, na última semana, servi encontros bilaterais como um Bill Clinton na sua faceta pretensamente voluntarista. Mas sem direito a uma secretária que zelasse pelo meu bem estar, claro.

G4

No «Anti-Top» do blog da livraria Pó dos Livros, vejo, por esta ordem, os destaques: Na Síria, de Agatha Christie; Economia Portuguesa - As Últimas Décadas, de Luciano Amaral; os textos de George Steiner em The New Yorker; e a tradução portuguesa de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth. Fosse este o top das livrarias portuguesas e poderia afirmar estarmos muito bem nutridos intelectualmente. Aliás, poderia mesmo defender que colocássemos cartazes nas fronteiras entre Portugal e Espanha para uma pequena demonstração de vaidade intelectual, para tomar a lugar da soberba.

19/07/10

Nigger with a library card


No Desesperada Esperança, o Bruno diz que Augusto Santos Silva é «uma espécie de Brother Mouzone do PS». Para quem é fã do The Wire, isto não deixa de ser uma grande piada.

14/07/10

A guerra, os espiões e o fim do Mundo





E pronto. Começaram os assuntos criados à pressão. Tal como referi aqui, com o fim do Mundial entrava-se no grande vácuo (de notícias e temas) que, dizem as leis da Física, tem de ser instantanemanete preenchido com mais volume. Nem que seja de ar.

E de puro ar se encheram as manchetes na última semana. Aparentemente, foram «descobertos», ou desmascarados, vários espiões russos nos Estados Unidos. Uma dezena inteira, pelo que dizem. Espiões russos que, pasmem-se as alminhas, «pareciam-se com cidadãos comuns e transmitiam para o SVR (um dos serviços de espionagem russos herdeiros do KGB) informação banal», a acreditar no que diz o Diário de Notícias.

Claro que, para mim, foi uma surpresa descobrir que os espiões, para além de malandros, ainda cometiam o pecado último de se «misturarem» («blend in», para ser mais preciso) com a população civil. Não sei se, para o leitor, também foi um choque saber isto. Que desgraça. Agradeço ao jornalista pela informação útil.

Rebentaram logo as consciências mais sensíveis. Vem aí a Guerra Fria. Chegaram os «vermelhos». A Rússia quer dominar o Mundo (não é que não queira). Estamos todos inseguros e vulneráveis à acção da espionagem de outros países.

De facto, aqui há dois grandes pontos a lembrar.

Primeiro, os espiões misturam-se. Não se misturam assim ou assado, assumem esta ou aquela identidade. Misturam-se, ponto. A maior parte deles, até, não «nasce» na vida para-militar, nas forças de segurança ou sequer em serviços governamentais. Desenvolvem, isso sim, as suas vidas profissionais na maior das calmas e na maior das doces ingenuidades até serem abordados e convidados a aproveitar a posição proeminente que têm na sociedade do seu país ou do estrangeiro para «espiarem», que é, na prática, quase o mesmo que dizer para «ficarem atentos a qualquer coisa estranha». A quem servir a luva, fica a informação: o que define um espião é, precisamente, sê-lo sem ninguém saber. Dizer que espiões russos, inacreditavelmente, até «se pareciam com cidadãos comuns» é que é de fazer chorar qualquer pessoa com um palmo de testa.

Em segundo lugar, este súbito «alerta vermelho». Algumas pessoas, e jornais que deviam saber melhor, já andam para aí a dizer que, afinal, a Guerra Fria não acabou e que estamos a passar por um novo período sensível nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia. Puro disparate. A espionagem existe porque sempre existiu. E sempre existiu porque a desconfiança é um elemento crucial de auto-preservação nas relações humanas, sobretudo na diplomacia, que é a mais formal desses relacionamentos. Desconfiar é proteger o próprio coiro, poderíamos dizer.

Para além do mais, é curioso que só se olhe sempre para russos e americanos. Ainda em Janeiro deste ano, o Presidente Sarkozy decidiu criar uma «escola de espiões». O objectivo? Criar espiões? Não, de forma alguma. O objectivo é centralizar os serviços de espionagem da França, que são dos mais antigos da Europa e, diz-se entredentes, dos mais eficazes deste Continente a navegar no optimismo e na confiança universal. Não é por acaso que a palavra inglesa «espionage» é, na verdade, francesa.

E quem diz França, diz Espanha, Alemanha, Marrocos, Canadá, México (sim, até o México, sem preconceito de imaginar espiões de sombrero), África do Sul, Reino Unido ou Portugal. Muito bem, talvez em Portugal o conceito de espião tenha de ser referido entre aspas, mas os serviços, como toda a gente sabe, existem.

Sarkozy não podia «criar» espiões porque estes já existiam há muitos anos e andam por aí, a fazer o mesmo que russos e americanos. Quem sabe, talvez estejam neste momento a tomar um Café na Brasileira a ver quem passa. E a tomar notas num post-it microscópico, claro. A prepararem-se para a nova Guerra Fria.

Sobre relações



Aqui recorda-se, e bem, um excelente filme que passou inominável em Portugal e quase despercebido (que eu saiba) na Europa: Lars and the Real Girl.

E percebo o dilema: «Ainda que não saiba dizer se Lars and the Real Girl se coloca na categoria de comédia ou de drama, o facto é que é um excelente filme, com boas interpretações e uma história original, bonita e deliciosa.»

Drama ou comédia, o facto é que é um excelente filme e uma boa surpresa, acredito, para quem se aventure por um filme que não vai aos Óscares. Independentemente da fama, fica a recomendação de um filme que, contrariando os tempos modernos, realmente fala de relações humanas. Ironicamente ou não... com uma boneca insuflável entre as principais personagens.

11/07/10

Dia decisivo


Hoje é um dia decisivo. Um dia de charneira. Mas descansem, caros leitores, não sou um fatalista do futebol. Apesar de perfeitamente integrado e acomodado no complexo sistema de treinadores de bancada, não choro a ver futebol e, certamente, não faço «preparativos» para um jogo de futebol. Nem mesmo uma final do Mundial - que continua a ser, para mim, o pináculo da satisfação para quem gosta destas coisas. Não, o dia não tem exclusivamente a ver com futebol. Hoje é um dia decisivo porque, acabando o Mundial - um assunto actual minimamente interessante -, entramos directa e definitivamente na «silly season».

Mas, antes de divagar no deserto que é viver em Portugal entre Julho e Setembro, falemos de futebol, que continua a ser a nossa única grande reserva de petróleo.

A Espanha fez uma caminhada peculiar até à final do Mundial.  Vitórias curtas, uma eficácia que até deixou bastante a desejar, uma certa de falta de confiança no início da prova. A coesão do meio-campo e a facilidade com que trocavam e trocam a bola no meio-campo adversário não compensava a falta de ideias e de movimentos de ruptura perto da grande área.

E nisto reside a grande lacuna deste Mundial para a Espanha: Fernando Torres. Sem Torres em forma, a equipa domina a bola, até pode dominar o jogo, mas não consegue aproveitar os espaços criados. E isso tem sido óbvio em vários jogos, incluindo contra Portugal, equipa desfalcada que se viu empurrada para trás mas que a Espanha não conseguiu «fuzilar» com o jeito que poderia ter em melhores dias.

Os prós da Espanha? A defesa, com toda a sua experiência e velocidade (Puyol, Ramos) temperadas com um central cuja agilidade desafia as leis da gravidade decorrentes do seu metro e noventa e dois (Piqué). A facilidade com que o «acordeão» do meio-campo abre e fecha sobre o adversário, com bola ou sem bola, com espaço ou sem espaço (só os magos Xavi e Iniesta seriam suficientes para isto). A experiência que têm de jogar juntos, e com este sistema, há largos anos, desde as camadas jovens. E, finalmente, Villa, que confirma o seu estatuto como avançado polivalente que surge fora da área ou dentro da área conforme as necessidades do jogo, sendo a maior delas, neste Mundial, o «apagão» de Torres.

Contras? Não há muitos. Mas a ausência de um ponta-de-lança de área (que até Güiza colmatou no Euro 2008) pode ser importante se a Holanda se fechar na defesa. A falta de confiança que, de vez em quando, surge no seio da equipa mas que, com a consciência de estarem na final de um Mundial, certamente já terá sido desintegrada.

Já a Holanda parece ter caído um pouco de pára-quedas nesta final. É um histórico do futebol europeu, mas um histórico de poucos trunfos na manga. Tal como a Inglaterra e, curiosamente, a Espanha, parece que fica sempre a faltar algo à Holanda para ser perfeita e muito para ser campeã, quando outras selecções ganham títulos a fio com muito menos argumentos. Se é a confiança, se é a influência psicológica da ideia de uma «maldição das grandes competições» ou se é outra coisa, ninguém sabe. O que se sabe é que, desta vez, depois da era dos De Boer, Kluivert, Bergkamp, Nistelrooy, Van der Sar, Winters, Seedorf e outros tantos craques, é uma equipa cheia de buracos que tem na mão a hipótese de fazer justiça pelas grandes equipas holandesas que ficaram pelo caminho.

Prós? Sem rodeios, Sneijder e Robben. São eles os grandes obreiros do caminho da Holanda nesta competição, e os dois motores criativos de todo um país. Van Bommel, pelo trabalho sustentado que faz naquele meio-campo. Stekelenburg, que (apesar das críticas que tem recebido) recebeu a difícil herança da baliza de um dos melhores guarda-redes de sempre da Europa (Van der Sar) mas tem cumprido decentemente a tarefa, safando até a Holanda de alguns dissabores nesta competição. A favor, têm ainda o espírito de um país do futebol que ainda não vingou num Mundial a sua tradição importantíssima para o desporto na Europa.

O que joga contra a Holanda? Aqui há mais do que na Espanha. O desconcerto daquela defesa, onde a maior parte dos jogadores parecem esquecer-se que jogam ao lado de outros. O lado direito da defesa, onde a inexperiência de Van der Wiel e a excessiva dureza de Boulahrouz poderão criar graves problemas ao sector recuado da equipa. E, mais importante de tudo, o medo da tradição, o medo de estarem condenados a não ganhar nada, se a cabeça ficar focada nos insucessos do passado.

Provavelmente, será um grande jogo. Provavelmente, a Espanha até ganhará - tem, aliás, melhores condições para o fazer. Mas, em nome do contraditório, eu apoiarei a Holanda. Não é uma manifestação de anti-iberismo ou o raio. É simples admiração por dois jogadores: Robben e Sneijder. Mais do que isso, é admiração por uma miríade de jogadores que nunca vi ganharem quando mereciam: Bergkamp, De Boer, Overmars, Seedorf, Crujff, e por aí fora. É, sobretudo, por 1974, e pela derrota do melhor futebol em prova, que apoio a Holanda hoje. Para que os melhores jogadores de outrora possam ser campeões. Nem que seja da bancada.